Da simbiose imperfeita

junho 27, 2012

imagem capturada pelo Deputado O. S. Ozz em Savannah, GA, USA, 27/06/2012

Nada ao que digo. Parece não lhe fazer sentido. Por isso boia, inconstante: o desejo de aproximação e de repulsa simultâneos. Assim mantemos a distância segura dos indecisos, subjugando-nos aos caminhos escusos das presas em potencial, ou ao olhar aguçado da ave de rapina – a perscrutar do cimo – quando, em verdade, tudo o que subsiste é o amor e a entrega. A vida não volta. Ela passa rente às retinas, numa sucessão rápida de imagens difíceis de apreender. É porque não mergulhamos o suficiente além da superfície para compreendermos da essência. Ela pulsa submersa, latente nas ideias, que ficam a especular sobre aquilo que não foi, sobre o que poderia ter sido ou mesmo sobre o devir. Mas somente quando tivermos firmeza e segurança de sermos nós mesmos, sintonizados à frequência do sentimento mais profundo, da verdade interior de cada criatura, seremos verdadeiros heróis na aventura do viver.

     

pois caga

e come desses dejetos servidos aos brasileiros

mastiga bem

para a boa digestão

para não ferir a camada de ozônio

para um processo com certificado verde

para a estética saudável ao maximizar toda uma vida de bosta

e engole sem fazer a cara feia

sorrindo para a câmera da tv

a história sempre foi (sempre será)

escrita pelos demônios que se vestem de branco

na expansão inconsequente do vazio

– espaços ermos

      

ou então:

vá para o campo de batalha

se para isso lhe forem caros

os dentes

Junto aos serenos

junho 14, 2012

Eu vi a menina com estranha bota,

levava numa das mãos espécie rara de flor,

que trazia cuidadosa, junto ao peito.

As cores de suas pétalas, do carpelo, estames,

até mesmo de suas sépalas eram vívidas, vibrantes.

Aquela menina era linda e não interessam,

em absoluto, as cores.

Mas as suas botas de plástico:

elas traziam asas delgadas e translúcidas,

uma partia da superfície canhestra à altura do tornozelo daquele mesmo pé,

outra deixava o plástico direito lá pelo maléolo do outro calçado.

Ah, eu amava aquela menina!

Com a mesma intensidade do meu amor pela vida.

Então eu vi:

um carrapato em cada uma daquelas asas alvas e longas das botas estranhas.

Eles eram ogros vistos assim: de perto.

Ao longe, entretanto,

não nos incomodavam.

Quando nos apercebemos,

sambávamos a um palpite infeliz de Noel,

e eles cravaram as suas esporas naquelas asas.

Subimos às alturas desconcertantes.

As pétalas

– já disse que não interessam as cores –

despedaçavam da flor deixando um rastro efêmero na trajetória do céu,

podia ser visto se alguém estivesse a perscrutar a noite.

E cheguei a pensar em devaneio meu,

não fosse pousarmos leves, úmidos,

junto aos serenos,

quando o dia amanheceu.

27 contos e 1 romance

junho 10, 2012

Luciana Saddi, psicanalista e colunista da Folha, apresenta vinte e sete contos em seu segundo livro, lançado pela Editora Jaboticaba – SP, no ano de 2010.

Conto é uma narrativa concisa, falada ou escrita. Ao longo dos vinte e sete textos – os quais compõem este livro – algumas personagens idealizadas pela escritora são apresentadas em narrativas que, em linguagem simples e contagiante, discorrem sobre ampla gama de sentimentos, de relacionamentos, de reflexões e do sexo característicos do humano contemporâneo.

Impossível não se identificar com estas narrativas e suas personagens, visto se tratarem de temas intrínsecos aos nossos próprios anseios e demandas. Os contos, entretanto, apesar da linguagem direta, estão longe de tangenciarem as questões do humano pela via do comum ou pela seara da auto-ajuda. São, antes, narrativas impregnadas de forte carga emocional: aquelas que falam diretamente aos sentidos e levam à reflexão.

E é tarefa das mais difíceis descrever numa resenha as particularidades deste conjunto de textos revestidos de simplicidade e simultaneamente capazes de impingir intensa impressão. Optei, então, pela citação de alguns excertos selecionados a partir de leitura atenta: creio que os trechos seguintes são representativos da obra e falam por si.

Dores: Fernanda. “Ser mulher é piada de mau gosto, os peitos crescem não se sabem vindo de onde, talvez do mesmo planeta daquela gente estranha. Detalhe: depois caem. A menstruação, nem se fala, quem inventou tal absurdo? Sangue era uma coisa para ficar dentro das veias. E o tal exame ginecológico, te enfiam um negócio metálico, gelado, vagina adentro, e raspam. O pior é a sonhada maternidade, o parto normal tão em voga ultimamente. As dores, as contrações, a cólica, se um alien te arrebentasse a barriga por dentro, você daria risada? Os médicos, uns encantos de homens, certos de que sua querida boceta se transformou em transporte coletivo, não perdem a oportunidade de lhe enfiar as mãos, sem a menor delicadeza, afinal é preciso dilatar. O corpo da mulher é a casa da mãe Joana. Por último, amamentar… Para quem se horroriza facilmente, ver sair leite de dentro de seus peitos estufados e doloridos, drenados e ordenhados, te remetendo a uma vaca: martírio.”

Dúvidas: Carlos e Mariana. “O gosto de tudo em sua vida de adulto vinha com uma pitada de plástico. Ele mesmo não sabia se por fazer leve e universal o sabor de fortes ingredientes, se por conta do processo industrial de conservação e transporte dos alimentos, se por amansar os sentimentos.” “– A senhorita tem toda a razão. Eu mesmo explico.” “É claro que um homem só dá razão a uma mulher por motivos vis ou muito respeito, coisa rara. Claro é, também, que as mulheres se excitam quando um belo homem lhes dá razão, e nesse jogo besta, onde um se finge de morto e outro se acredita importante, toda a espécie feminina se ferra. Carlos sabia disso, Carlos era um expert, Carlos queria comer aquela mulher e disso não tinha dúvidas.”

Sonhos: Fernanda e Mike. “Ele bebia tranquilamente uma cerveja, assistia tranqüilo ao espetáculo e parecia estar gostando daquilo. Fernanda olhava com o canto dos olhos, meio ressabiada, desconfiada do destino, curiosa. O sorriso era doce, exalava bondade, os olhos muito azul-claros pareciam sinceros e sofridos, afinal homem sem sofrimento não tem graça. Ele, cada vez que aplaudia uma música, brincava. Não de caso pensado. Uma brincadeira que saia pelos poros, mas não se expandia loucamente para fora. Não contagiava, apenas dava alegria a que estivesse por perto.” “Esse ingrediente faltava ‘a vida de Fernanda, que resolveu ficar ali apreciando o bem-estar súbito e raro, a bela paisagem. Passado algum tempo tinha certeza de que algo inédito havia acontecido em sua vida, um lance de sorte, fortuna, acaso, nunca havia chegado tão perto de um homem lindo de verdade. Claro que já tinha visto espécimes sublimes, mas no cinema, nas revistas, jamais ao vivo, em cores, sentado ao seu lado. E quando ele abria a boca num movimento sutil com os lábios, o palco se iluminava. Aquele modo de sorrir encarnava, com certeza a bondade. A bondade abstrata e universal, que somente o grande mestre flamengo, Rembrandt, fora capaz de retratar. Engraçado encontrar nos dias de hoje um sorriso de tantos séculos atrás.”

Explosões: Cecília e Erasmo. “Na mesa mãos se pegavam no ar, quase alcançando os ombros, davam vazão à excitação sexual, muito mais ansiosas que as bocas, que mastigavam tranqüilas. Na saída do restaurante um braço na cintura, ralando o peito esquerdo de Cecília, que se sentia levemente molhada.” “No carro, olho no olho, de perder a respiração e pensar: e agora, José? E foi ali mesmo que começou uma vontade infinita de pegar com a boca, com os lábios, com a língua. Engoliram-se. E foi de arrasar.” “Na cama dedos firmes, um pau resoluto e uma vontade de entrega sem medo. Ela uivava, subia com as costas pela cabeceira da cama, era tanto, dava até medo, um foguete no ventre e dizia: – para, e pedia não para, pelo amor de Deus! Ele nem escutava, mas seu corpo adorava aquela dança, podia contar nos dedos as vezes em que havia gozado balindo feito carneiro.”

Conquistas: Carlos e Mariana. “Sentia segurança naquele conquistador barato, o tipo de homem por quem mulher nenhuma poderia se apaixonar, apenas se divertir, essa era uma ideia extremamente tranqüilizadora, deliciosa. Depois de duas vezes viúva, havia jurado: amor, nunca mais. Afinal, tanto ela quanto Carlos sabiam que a paixão era um tipo agressivo de câncer.”

Alfinetadas: Fernanda. “Fernanda estava em mais um péssimo dia e com tanta raiva de tudo: do André, da Austrália, da australiana, dos homens, especialmente daqueles que queriam mulheres diferentes a cada semana, daquelas de precisavam de homens e dela mesma, incapaz de resolver os seus problemas amorosos. Não teve dúvidas: compraria um pinto e poria um ponto final em seus problemas sentimentais. Um belo e autônomo consolo. Ninguém acoplado ao instrumento. Era só disso que a mulher precisava.” “Foi à sex shop mais próxima, leu na placa, Kisses, loja de conveniência erótica, conveniência? Isso quer dizer que se você, cara amiga ou amigo, estiver sentindo tesão, mesmo que leve, tem onde saciar sua sede, a qualquer hora do dia ou da noite, é só entrar na Kisses e comprar um pau, um caralho, um nabo, uma cobra, uma jeba, uma vara, uma rola. Bateu uma fominha e a cama está vazia? Visitas inesperadas? As amigas estão na mão e arrumam um bofe, nem pagando? No problem, nas lojas Kisses, conveniências eróticas, você encontra pintos dos mais variados formatos, cores e sabores. Vai chegar tarde do trabalho? Peça a sua mãe: – mãe, por favor, passa na Kisses aí de baixo e me compra um passarinho, uma balsa, uma cenoura, um vibrador, uma trolha. Suas preocupações acabaram, porque logo ali, ma esquina, tudo à mão, mala, pirulito, picolé, sorvetão, e ainda ferramenta, ganso, aríete, tromba, mastro e pingolim. Viver deixara de ser muito perigoso.”

Amantes: Carlos e Mariana. “Mariana não resistiu a um outro encontro, podia quase gozar só de pensar em Carlos entrando nela. Rezava para que ele desistisse e logo em seguida rezava o contrário. Seu medo era verdade, as palavras – paixão nunca mais – derretiam-se, e ela se derramava. Achava estranho que se vissem apenas em seu apartamento, não queria perguntar se ele era casado, sabia a resposta de cor.”

Sustos: Fernanda e Mike. “Sentia-se totalmente deslocada em ambientes desconhecidos, tinha certeza da falta de um pino na cabeça de qualquer estranho que se aproximassem. O que veriam nela?” “Perguntava ao seu analista, a Deus, a todo mundo, por quê? Qual é o problema? Quem foi que inventou isso? Quando passa? Aquele sentimento besta e doído de ser sem raízes, sem chão, sem propósito, continuava.” “Tomava um café no vidro envidraçado do museu, intervalo entre as aulas, do lado de fora via um passarinho agonizante, último suspiro, pôs-se a chorar. O amor feminino era líquido, vivia molhada de lágrimas.”

Socorros: Fernanda e Mike. “Fernanda, fascinada, pensava na sua relação com André. Poderia comprar a peça, colocá-la no terraço do apartamento e todo o santo dia rezar para que Deus a proteja daquele tipo de maldição, a maldição de gozar pela dor, de gozar pela estúpida capacidade de agüentar um homem a qualquer preço. Seu filho saberia desde sempre que nunca se deve tratar uma mulher assim e os vizinhos teriam certeza de sua loucura, pena que o bronze fosse tão caro.” “Mike achou a peça de mau gosto, absurda, doentia, os homens não eram assim, isso era coisa de gay, de depravado, de louco, os homens amam as mulheres, as tratam bem… Mas não conseguia desviar o olhar daquela mulher que mesmo em metal gozava e daquele homem que mesmo sendo cruel lhe dava infinito prazer.” “E ela não sabia se era destino, se era bom, se era ruim, se era. Sentia uma nova paixão e fracasso. Precisava de ajuda. Escutou algo no rádio sobre um grupo de auto-ajuda anônimo – mulheres que vivem molhadas demais… Era com ela.” Conto de importância fundamental ao contexto da obra.

Pesadelos: Décio, Sônia e Lígia. “Estava enjoado e cansado. Voltou para a cama, queria paz. Chorou muito. Sempre se lamentando da vida que lhe dera tanto, que lhe tirara tudo. Queria morrer e não tinha coragem. Quem sabe, Deus piedoso lhe mandasse um ladrão armado, um acidente de carro, alguma solução.” “Elas estavam consternadas pelo sofrimento dele. Olhavam-se com a cumplicidade que somente um casal antigo é capaz de ter e pensavam a mesma coisa: ele nunca teve jeito com a mulheres, nunca as entendeu, sempre achando que sexo era coisa de puta. Mas quem é que poderia lhe dizer que mulher não é boneca?” “Os olhos de Décio se encheram de lágrimas.” “– Eu pensei que Deus estava do meu lado, só essa vez.” “Como explicar que Deus não tinha nada a ver com isso?” “Tinham muito a dizer sobre o amor e a paixão. Tiveram um caso tão forte e tão bonito, que ainda queriam estar juntas, sempre. Por isso aceitaram pacificamente a diminuição do tesão. Nunca mais encontraram o mesmo amor, a mesma loucura divinamente obscena que viveram. Mas não se importavam. Tinham algo extremamente raro, um amor feito de restos ardentes do passado e um companheirismo sem igual.” O conto mais melancólico – especialmente para Décio – e apresenta ainda uma bela descrição do sucesso no relacionamento à dois.

Luxúrias: Cecília e Erasmo. “O medo de não saber quem estava do lado de fora, de ser pega daquele jeito, a excitava. Ela se derretia, se agitava. Silêncio novamente, silêncio misturado à expectativa de escutar passos, pessoas, Erasmo. Seu sexo doía. A respiração em espasmos aumentava o tesão que tomava conta de todo o seu ser. Cecília fora reduzida a um corpo molhadoem chamas.” Oconto mais vibrante, vívido!

Sobreviventes: Mike. “João e Maria, seus filhos, que saudade! As crianças foram morar com os avós no interior, ele não tinha emprego, não tinha renda, nem mais vergonha na cara. Pediu a um amigo para morar de favor naquele lixo e aos sogros que cuidassem dos filhos. E tinha que agradecer! Podia ter sido pior, ainda não havia pedido dinheiro aos seus pais aposentados.” “Na UTI ela pediu: – tenha pena de mim! Ele chorou até se acabar. Ela querendo morrer. E ele? Tentando se salvar.” “Mike queria voltar a ganhar dinheiro e o convívio das crianças. Queria perdão.”

Comidas: Fernanda e Mike. “O tempo escorre, os filhos chegam, o amor acaba. E sem endereço fixo procura ou é procurado por alguém e se instala no vão dos dias, escondido entre estranhos hábitos e boas maneiras, torna-se um vício.” “Docemente confessava que tinha medo de ficar só com as crianças, órfãos sofrendo, o futuro e a culpa da saúde plena contra si. Meteu os pés pelas mãos da solidariedade. Depois que passa é difícil explicar, as razões eram desculpas. Fechou os olhos por mais tempo que um piscar exige. Encheu os copos de vinho.” “Se eu tivesse algum dinheiro, perspectivas, não sou futuro para alguém com passado e renda.” “…de tanto querer poupar os outros da dor acabou muito machucado, não sabia ferir nem sabia se queria viver…”

Renascimentos: Fernanda. “Molhada no súbito encontro de seu desejo com suas faltas.” “Porque o amor é um ser despudorado e alegre.”

Lá pelo conto sexto, percebe-se que não é casual o fato das personagens de mesmo nome se alternarem, repetirem e interagirem ao longo dos textos: trata-se, de fato, de um livro com as características de contos independentes e também aquelas de um romance – a descrição longa das ações e sentimentos de personagens fictícios, numa transposição da vida para o plano artístico.

Uma observação adicional é a de que os sentimentos e os relacionamentos descritos nos textos apresentam forte conotação sexual – segundo a tradição da psicanálise freudiana. E, num primeiro momento, senti falta de outros elementos – dos símbolos, dos mitos e da alquimia (da psicanálise junguiana) – que acredito desempenharem também um papel importante no comportamento e na compreensão do humano.

Entretanto, numa reflexão mais cuidadosa, compreende-se que o elemento transcendente é exatamente aquele responsável pela amarração dos contos na unidade de um romance, ficando isso patente no próprio título escolhido pela escritora para a sua obra: “Perpétuo Socorro”.

As impressões são espólios do domínio da realidade a impingirem marcas às faces. Mesmo estas hão de se curvarem ante o escoar do tempo. Por isso, ama enquanto a vida te habita. O tempo – vento de grãos – a polir laboriosa e ininterruptamente a realidade da rocha. Assim: as faces transformar-se-ão em cadáveres, e a carne vincada (macerada) servirá de nutriente aos vermes; pois operam através de percepções concomitantes ao fluxo, as impressões. Não há maquilagem, silicone ou antioxidante que dê jeito. Da realidade última nada, ninguém escapa. Sã e salva é a criatura dedicada a uma estranha transcendência daquilo que é árvore. Da essência dela, extraído o tronco, trabalhado em abrigo ao corpo. Pensa no féretro como veículo para o corpo de além-vida. Tão somente isso. Pensa, a realidade é o que fica: daqui nada se leva. O amor distribuído em vida será a realidade dum sorriso; o ressentimento e o recato, gargalhada bizarra na boca do infinito.

Photography by Joanne Wells: ‘Bonaventure Cemetery with Moss Draped Oak, Dogwoods and Azaleas’, Savannah, Georgia, USA.