Esse texto breve traz as minhas passagens prediletas do livro “O amor que acende a lua” de Rubem Alves, 15a edição, Campinas, SP: Papirus, 2011. Livro este que terminei de ler ontem. E o fato de eu estar transcrevendo estes trechos no dia de hoje tem um significado único, mágico, especial; mas que deixo aqui subentendido, implícito; porque há também poesia no vazio e nas reticências. Espero que essa colcha de retalhos sirva para divulgar essa obra e traga algum alento para os leitores que buscam matar a sede nos mananciais cristalinos da boa escrita.

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Olho para cima e para os lados para ver as árvores. Tento ouvir a sua silenciosa pregação. Se pregam é porque pensam. Mas seus pensamentos são diferentes dos nossos. Elas pensam da mesma forma como produzem brotos e flores. Não pensam pensamentos da cabeça. Elas pensam com o corpo: raízes, tronco, galhos, folhas, flores, frutos. Pensam sempre os pensamentos que devem ser pensados, isto é, pensamentos que têm a ver com a vida.

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“Olhe estas velhas árvores. Quanto mais velhas mais amigas…” – dizia Bilac. Isso, isso mesmo. As árvores são amigas. Estão sempre fielmente no mesmo lugar, à espera. E se não comparecermos, elas continuarão lá, do mesmo jeito. E sem nada dizer. E jamais se vingam. É só olharmos para elas com a cabeça vazia de pensamentos para sermos possuídos por uma imensa tranquilidade.

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O que move o atleta não é o prazer da atividade, em si mesmo. Se assim fosse, ele ficaria feliz em correr, nadar, saltar, sem precisar comparar-se aos outros. Mas depois de correr ele consulta o seu relógio. Está comparando o seu desempenho em relação aos outros. Quando a gente se envolve numa atividade por prazer a gente está brincando. Não olha para o relógio. É o caso das crianças correndo – como potrinhos. Ou na água: como golfinhos. O espaço, representado pela grama, pela água, pelo vazio, é o seu companheiro de brincadeira. A atividade lúdica produz um corpo feliz.

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Haverá coisa mais anticorpo, mais antivida? A competição não é motivada por amor ao corpo e ao seu prazer. Na competição o espaço não é companheiro da brincadeira, é inimigo a ser derrotado. O prazer de quem compete não se encontra na relação corpo-espaço, mas no resultado: quem teve a melhor performance. O objetivo da competição é a comparação. E a comparação é o início da inveja e da infelicidade humana.

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Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida…). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, da lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do candomblé.

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E o que é que isso tem a ver com o candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação por que devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer; pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa – voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo.

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Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressuirreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. “Morre e transforma-te!” – dizia Goethe.

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Dizem os professores universitários que somente são dignas de conhecimento acadêmico as ideias que tem pedrigree reconhecido, isto é, aquelas que têm uma teoria como mãe e um método como pai. Se essa ascendência não for demonstrada a dita ideia não tem permissão para entrar na festa, qual seja, a tese, pois ideia sem pai e sem mãe, vinda não se sabe de onde, sem documentação, é certamente plebeia bastarda. Esse rigor protocolar retira logo minhas ideias do círculo da dignidade acadêmica, posto que elas sempre me aparecem repentinamente, sem teoria e sem método, sem que eu as tivesse procurado e sem que eu possa explicar a sua origem. E são sempre aparições felizes e que me fazem rir. É o caso dessa ideia que me apareceu hoje pela manhã, quando caminhava. Ela pulou na minha frente e me disse: “Tanto se escreveu sobre o ensinar e o aprender. No entanto, está tudo resumido no duplo sentido da palavra comer.” Dito essas palavras ela sumiu e eu fiquei decifrando o enigma do duplo sentido da palavra comer e sua relação com a educação.

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O segundo sentido da palavra comer é sexual. Comer é transar. Não sei a origem desse sentido. Sei que, no mundo dos animais, comer e transar frequentemente se confundem. Aranhas e louva-a-deus (como é mesmo o plural dessa palavra?) fêmeas devoram seus parceiros ao final da cópula. É bem possível que, na língua de tais bichos, se diga “vou comer o meu marido atual” (só existe o marido atual, porque os outros já foram devorados) como expressão sinônima de transar. O comer gastronômico dá prazer e engorda as pessoas. Quem engorda fica igual, só que maior, mais pesado. Vai assimilando aquilo que os outros prepararam. Quem sabe o que ouviu nas aulas, sabe o pensamento dos outros, só sabe aquilo que os outros sabem. O comer sexual é diferente. Transar dá prazer e engravida. Gravidez é uma transformação qualitativa. O sêmen é ejaculado. Milhares de sementes de vida são lançadas. Onde ele cair, algo novo, que nunca aconteceu antes, diferente, vai germinar e nascer. Comida que não estava prevista em nenhum menu. A palavra “seminário” vem de sêmen. Seminário não é aula. Seminário não é a transmissão de saberes de outros. É transa, para que haja gravidezes e ideias novas nasçam, ideias que nem mesmo o professor jamais pensou. Num seminário o professor é também um aprendiz. Na aula o aluno recebe um saber do outro. O objetivo do seminário é diferente: que todos, juntos, por meio dessa orgia espermática, fiquem grávidos e comecem a parir.

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Qualquer participante pode definir a pergunta inicial, provocação de pensamento. O que dá vida a um seminário é o não saber, a procura, os enigmas. Na aula a inteligência é um estômago que rumina e digere. Também isso é preciso. Mas no seminário a inteligência é útero. As sementes são jogadas lá dentro para que ela fique grávida – algo nunca pensado deve crescer e ser parido. O objetivo não é chegar a resultados. É desenvolver a capacidade de pensar e descobrir coisas novas.

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O prazer que Walt Whitman sentiu ao entrar para a escola foi tão grande que ele lhe deu a forma de um poema:

Ao começar meus estudos

me agradou tanto o passo inicial,

a simples conscientização dos fatos,

as formas, o poder de movimento,

o mais pequeno inseto ou animal,

os sentidos, o dom de ver, o amor

– o passo inicial, torno a dizer,

me assutou tanto,

que não foi fácil para mim passar

e não foi fácil seguir adiante,

pois eu teria querido ficar ali

flanando o tempo todo,

cantando aquilo

em cânticos extasiados.

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Muitos séculos depois de Aristóteles, no final do século XVIII, o filósofo Emmanuel Kant escreveu um pequeno opúsculo com o título “O que é o Iluminismo?” em que ele faz uma exortação que Aristóteles não entenderia. Ele diz: “Sapere Aude” – ouse saber!

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Acontece que Kant tinha cosnciência de um tipo de conhecimento diferente daquele a que se referia Aristóteles. Ele sabia que há um conhecimento que não é natural por exigir a virtude moral da ousadia. A ousadia é uma atitude de contrariar aquilo que é natural. Ousadia implica coragem, fazer o proibido, enfrentar o perigo, aceitar um desafio. Dá medo entrar numa floresta desconhecida. Dá medo escalar uma montanha perigosa. O impulso natural é recuar. Mas Kant diz: “Ouse conhecer!”

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Mas eu não posso respeitar deuses que me proíbam o exercício do pensamento. Um deus que não sobrevive ao exercício da inteligência não pode ser deus. É um ídolo de pés de barro. Mas eu amaria e respeitaria um Deus que não temesse o pensamento e que me dissesse, como desafio: “Ouse pensar!” Eu amaria e respeitaria um Deus que desafiasse os homens a abandonar suas conchas para se tornarem seres alados!

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“No princípio era uma cena de felicidades…” A alma, no seu lugar mais profundo, é uma cena de felicidade. Viver é sair por aí, ou procurando a cena feliz ou tentando cosntruir a cena feliz. O amor por um homem ou por uma mulher acontece quando, repentinamente, ao ver um rosto, tem-se a impressão de havê-lo visto lá, dentro da cena da alma:

Quando te vi amei-te já muito antes,

Tornei a achar-te quando te encontrei.

Nasci para ti antes de haver o mundo.

(Fernando Pessoa)

Amamos uma pessoa porque a sua imagem se insere na cena de felicidade que havia na memória “antes de haver o mundo”… A paixão acontece quando o rosto real à minha frente coincide, na minha fantasia, com a imagem perdida que busco (para completar a cena).

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“A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce.” Assim disse o místico Ângelus Silésius. O amor é como a rosa.

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A fotografia é simples, apenas um detalhe: duas mãos dadas, uma mão segurando a outra. Uma delas é grande, a outra é pequena, rechonchuda. Isso é tudo. Mas a imaginação não se contenta com o fragmento – completa o quadro: é um pai que passeia com o seu filhinho.

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Um profeta do Antigo Testamento, certamente sem entender o que escrevia – os profetas nunca sabem o que estão dizendo –, resumiu essa pedagogia invertida numa frase curta e maravilhosa: “…e uma criança pequena os guiará” (Isaías 11.6). Se colocarmos esse moto ao pé da fotografia tudo fica ao contrário: é a criança que vai mostrando o caminho. O adulto vai sendo conduzido: olhos arregalados, bem abertos, vendo coisas que nunca viu. São as crianças que veem sempre pela primeira vez com espanto, com assombro de que elas sejam do jeito como são. Os adultos, de tanto vê-las, já não as veem mais. As coisas – as mais maravilhosas – ficam banais. Ser adulto é ser cego. Os filósofos, cientistas, educadores acreditam que as coisas vão ficando mais claras à medida que o conhecimento cresce. O conhecimento é a luz que nos faz ver. Os sábios sabem o oposto: existe uma progresssiva cegueira das coisas à medida que o seu conhecimento cresce. “Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que conhecê-la. Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez…” As crianças nos fazem ver “a eterna novidade do mundo…” (Fernando Pessoa).

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Quem primeiro percebe são os poetas. Isso se deve ao fato de que os seus olhos são diferentes. Por isso eles veem as coisas ao revés. Poesia são as coisas vistas ao contrário. Não é coisa do pensamento, é coisa da visão. Quando as pessoas, ao ouvirem um poema, dizem que não entenderam e pedem explicações, é porque elas puseram o poema no lugar errado, no lugar onde moram os pensamentos. Mas um poema não é para ser pensado na cabeça. É para ser visto com os olhos.

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Andar para frente pode ser um equívoco. Aforismo de Eliot: “Numa terra de fugitivos aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo.” Por vezes andar para frente é ficar cada vez mais longe. Os adultos andam para a frente. Os poetas parecem andar para trás. Os adultos dizem que eles estão fugindo. Mas não. Como os salmões, que deixam o mar e voltam às nascentes de águas cristalinas onde nasceram, os poetas desejam voltar às origens. É lá que mora a verdade que os adultos esqueceram. Fogem da loucura da vida adulta. Buscam reencontrar a simplicidade da infância. Acho que é isso que Eliot queria dizer quando escreveu: “E, no final de nossa longa exploração, chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez.”

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A inteligência astral não nos abandona em decorrência de uma lei mais alta. Ela nos abandona por ser incompatível com a adultice. A inteligência adulta é grave. Faz afundar. A inteligência infantil é leve. Faz levitar.

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No colo de um Deus criança eu posso dormir tranquilo.

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Para DanielA, com AmOr.

Agora

apenas um tênue véu azul nos separa do

Eterno Porvir.

Felizes Flores no Chão

novembro 6, 2022

As Flores de Maio não Choram
O Orvalho Esconde-Lhes as Lágrimas
Já não Lembro Agora
As Flores de Novembro Sorriem
Prósperas
Serenas e Fortes
Verdadeira Dádiva de Primavera
(do Agora)
Matéria-Prima de Sonhos
Sublimada no Chão