Prisioneiro

fevereiro 24, 2009

 

(i) chegada. Enquanto inicio a grafia destes pensamentos, me assombro ao imaginar que os simples movimentos repetitivos de minha mão canhota são permeados por ondas de alta freqüência, que são aquelas devidas às sinapses de alguns neurônios – que ainda me restam. Além destas, as ondas da tv, dos celulares e da internet também estão no ar. Alguns às captam através de retrógrados aparelhos televisores ou mesmo os antigos, quase obsoletos, rádios am. Outros, mais modernos, já sabem isto tudo de cor. As cabeças estão para nós, os humanos, assim como os feromônios para as abelhas, ou os bigodes dos gatos. Vim para o cárcere em regime semi-aberto devido à sucessão dos erros passados que cometi. Estes eventos reverberam para frente e para trás no tempo, causando os desdobramentos que aqui me cabem narrar. O trabalho forçado consiste na observação, na diagnose e na correção da fabricação de rudimentares máquinas voadoras – características deste início do século xxi. Quando ocorre o arranjo precário destes apetrechos de suporte, há o risco de colapso – o que deve ser evitado, às custas de nossas próprias cabeças. Mudanças bruscas de comportamento: o ser humano não se encontra em estado de amadurecimento que o permita tolerar. Disso tudo, resta-me observar a exuberância da natureza no mês de dezembro. As chuvas de verão e o calor tropical saturam o reino vegetal de um verde insuportável. A não ser que se tenha um cigarro de palha para combatê-lo. Bem vindo à boca-do-tatu.

 

(ii) os caminhos de Elias Alves. Boa parte do período compreendido entre o alvorecer e o pôr do sol não faz jus à menção nestes escritos alfarrábios. Apenas mais uma correspondência enviada ao superior hierárquico – sem direito à resposta; pelo menos na sua parca compreensão de ordem das coisas. Foi algum tempo atrás – durante uma simples partida de truco valendo o toba (a diversão predileta dos boçais) – quando se deu a dissonância de nossas idéias sobre os fenômenos da natureza dos seres inanimados. Exatamente no momento em que chamei truco, com o zape por entre os dedos de minhas mãos. A criatura se debatia como animal acuado e insistia em não admitir a derrota. Usou dos mecanismos ocultos da magia negra para justificar o injustificável – e fez seu pacto de sangue com aquele ao qual não se deve nomear. Desde então, o superior hierárquico passou a adotar o cabelo repartido e com o penteado para a lateral. Sei que não sou santo, mas pelo menos não abraço sua causa. E se o bigode estreito não está entre o nariz e os lábios da face, deve ser mesmo por que serve de adorno para o seu anel de couro – como reza a lenda. Fim de tarde. Daqui do conforto deste vaso sanitário, trabalho na execução simultânea de múltiplas atividades: desde o preparo cuidadoso de um cigarro do matuto até a eliminação de excrementos sólidos. Deixo-me envolver pela bruma fétida que, a seu modo, me transporta para uma tênue sintonia com os elementos. Uma vez completo o ciclo das necessidades básicas do ser humano, a natureza permite que eu saboreie uma fatia de bolo de milho, oriundo da estância hidromineral de Águas da Prata, e maturada por duas rotações do planeta em torno de seu eixo. Boto bermuda, tênis e camiseta. O aparelho mp3 tocando, em alto e bom som, o velho rock and roll para dentro de meus miolos. É quando parto para a corrida por entre as curvas sinuosas da estrada de Elias Alves. Descendo o planalto, os caminhos permitem o vislumbre de um horizonte amplo e plano – em toda sua extensão. Passo por entre um estreito vão do pontilhão da estrada férrea. Pouco adiante, é possível observar uma grande formação rochosa que desafia a gravidade das cercanias. O topo do monte apresenta suas árvores frondosas, num arranjo inusitado que me remete à lembrança da vasta cabeleira de Baba. O caminho ziguezagueante da volta é árduo. Em certo trecho da subida os batimentos beiravam a freqüência crítica dos três hertz – e tive de caminhar um pouco. Cinqüenta e três minutos depois eu estava de volta à prisão dormitório em forma de prisma. Quem foi Elias Alves? Onde levam os seus caminhos? A sua existência, a sua história e a sua contribuição tornam-se pouco relevantes no contexto do ser humano ejetado da civilização para ser prisioneiro na boca-do-tatu. Melhor tomar um banho. A noite é uma criança – é preciso cuidar bem dela.

 

(iii) plano de fuga (ou sobre aquilo que vem do Espírito). A boca-do-tatu não é João Pessoa, nem tampouco a Roma Antiga. Mas parecem mesmo haver estranhas conexões – passagens secretas através de planos multidimensionais – que podem me levar para fora daqui. Esta noite eu pretendo explorar esta natureza de coisas.

 

 

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(iv) sem saída. As explorações da noite anterior mostraram-se infrutíferas. Tenho de admitir: estas pequenas frustrações vão minando aos poucos as minhas esperanças de um dia me ver livre desta prisão. Leio qualquer coisa sobre a astrologia. “Mercúrio e Netuno em sextil, Vênus e Urano em trígono; Lua cresce no signo de Aquário. Peixes: você deve, com certeza, seguir de acordo com seus planos, mas também deve considerar que nem sempre é possível fazer com que a realidade se ajuste à lógica esperada”. Quem foi que disse que não se deve dar crédito a antiga arte de observação das pedras celestes? E mais adiante: “Há mistérios e coincidências que podem atrapalhar; ou ajudar também”. Ainda não perdi a ilusão.

 

De volta à estaca zero. Retornamos à prisão dormitório antes que a noite arrastasse junto com a lua e as estrelas também as nossas almas. Eu preferia ficar sem essa. Li num muro destas cercanias: “Papa trilhas: Da natureza nada se leva, a não ser a recordação”. A queda é dolorosa. Mas a realidade é que nos trás de volta ao chão. Faz a gente acreditar em coelhinho da Páscoa, Papai Noel e até na Fátima Bernardes. A esperança é de um verde insuportável. Mas para o prisioneiro, casa é um conceito distante – quase abstrato – e ele tinha de contentar-se às sobras de uma Liga que ia se desfazendo como que numa miragem, à medida que as criaturas deixavam o recinto sobrando apenas os bêbedos e outros camelos. Belos espécimes de fêmeas deixavam o recinto para o aconchego de seus lares. Mas havíamos chegado tarde demais. Jack Daniels para elevar o espírito e promover a integração num ambiente acolhedor. Colírio para os olhos. O esconderijo – denominado de A Liga do Chopp – era como que um oásis no deserto. Apesar da perseguição implacável, conseguimos nos desvencilhar dos feitores. Fazia levantar sacos plásticos e outros dejetos ao meu redor, denunciando a nossa fuga. Logo que deixei a prisão – em forma de prisma – um redemoinho me envolveu. Vento frio e cortante na boca-do-tatu. Ontem eu e dois outros companheiros de cárcere tentamos uma incursão pela noite escura. Métodos de tortura ortodoxos e surpreendentemente cruéis. (v) a liga do chopp.

 

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(vi) o saber e o não saber: as razões do cárcere. Se você chegou até aqui fica a minha severa recomendação para que desista agora. O que será narrado abaixo implica em um pesado ônus para aquele que adquire tal saber. Esta é a razão do cárcere. A perseguição é inevitável para todos aqueles que sabem aquilo que eles não deviam saber. Fica aqui o meu apelo. Por que eu não te desejo a prisão. Enquanto você pensa, eu penso também. O propósito deste meu esforço mental consiste no desenvolvimento de uma ferramenta para a fuga definitiva da boca-do-tatu. Há aqueles que acreditam que Copérnico, Galileu e Newton – nesta seqüência – foram desdobramentos de uma mesma Inteligência que habitou o planeta ao longo de três gerações – distintas e subseqüentes – deixando o seu legado de iluminação sobre as órbitas, os movimentos e as interações da dinâmica entre as esferas celestes. E por que não? Mas o que poucos sabem é que foi esta mesma Inteligência que no futuro desenvolveu um equipamento de transporte baseado na potencialização giroscópica do nível subatômico da matéria. O alinhamento unívoco do eixo de spin de todos os elétrons que compõe o corpo – como forma de deslocamento. Este equipamento de transporte permite avançar e retroceder no espaço-tempo. E pode até te parecer estranho, mas prova disso é a existência dos discos voadores. Estou tentando construir um aqui no cárcere – usando alguns pedaços de pano, clipes e um garfo velho. Do que foram feitos os primeiros discos voadores? Acho que ainda vou levar algum tempo nisso. Abandone a leitura agora: última chance. A razão do cárcere tem o mesmo motivo pelos quais estes escritos alfarrábios foram interrompidos por dois dias – o leitor atento não me deixa mentir sozinho. Foi no crepúsculo do último milênio quando cientistas japoneses propuseram o conceito de gestão calcada na obliteração das palavras de ordem, que passam a ter um amplo espectro de sentidos (múltiplos) que o superior hierárquico tem a capacidade de manipular – para o bem coletivo da organização – no momento que lhe for providente. Tome como exemplo a palavra ‘limpo’ que pode ter, ou não, o mesmo significado de sua simples obliteração – ‘impo’.

 

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Mas a mola mestra do sucesso deste novo cenário organizacional consiste na aplicação sistemática do método de ‘frozen engineering’. A teoria do ‘frozen engineer’ foi contribuição original dos cientistas russos, desenvolvida nas geleiras da Sibéria ao longo dos anos da Guerra Fria. A idéia consiste em manter o compasso da oferta de mão de obra com as necessidades da demanda de trabalho. Assim, quando há queda na carga de trabalho, ocorre o congelamento do elemento humano – e vice-versa. Os grandes baús frigoríficos e os pequenos caixões de madeira para o armazenamento dos ‘frozen’ já fazem parte do cotidiano das modernas plantas industriais. Acontece que o trabalhador permanece alheio a esta sua sina. O processo de congelamento por sublimação transforma a memória gasosa num bloco estático em questão de pico-segundos [10-12s]. Daí a suspensão temporária do pensamento. Os engenheiros não precisam receber salário enquanto estão ‘frozen’ – também não gozam do direito às férias, ao décimo terceiro salário ou da participação nos lucros. No fim das contas – de tão malas que são – nem as próprias famílias dão falta dos engenheiros. Ninguém percebe quando é (ou foi) ‘frozen’ e apenas uma pequena cúpula da hierarquia sabe destas manobras escusas – e extremamente lucrativas. O saber é guardado a sete chaves por uma sociedade fechada – que por vezes lembra à Maçonaria. Só quando o processo de sublimação não é de efeito instantâneo – por não conformidade do processo – é que pode haver resíduo na memória. Isto aconteceu comigo. E fiquei sabendo. Mas se alguém sabe, a hierarquia fica sabendo que se sabe. E este alguém deve ser recolhido ao cárcere da boca-do-tatu. É mister manter o segredo – daquilo que poderia ser o estopim para uma nova revolução industrial. Melhor não saber daquilo que você sabe. E agora não tem volta. Simples como os olhos de uma boneca, que se fecham quando ela é colocada para dormir. Boa noite.

 

 

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A estrutura do disco é composta de dois conjuntos de cavernas dispostos num arranjo perpendicular alinhado com os eixos x-y – de forma a garantir a estabilidade estrutural da máquina voadora. Cada um destes conjuntos consiste num total de onze cavernas –

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disposição destas cavernas alinhadas paralelamente ao eixo x do disco voador. E, nesta mesma Figura (1), as posições onde serão montadas as cavernas perpendiculares ao eixo x da máquina voadora são indicadas pelos pequenos quadrados. Têm-se, então, um montante total de 22 cavernas – ou dois times de futebol – que caracterizam o esqueleto, ou chassis, do disco.

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“The Lapis Philosophorum is a legendary substance, supposedly capable of turning inexpensive metals into Gold; it was also sometimes believed to bring people the Eternal Youth. In the view of Spiritual Alchemy, making the Philosopher’s Stone would bring Enlightenment upon the Maker and conclude the Great Work.”

 

Lembro que ontem à noite assisti ao filme “Árido Movie” de Lírio Ferreira no Canal Brasil. Zé Elétrico ou Meu Velho – quem está com a razão? Isto me fez atentar para muita coisa. Mas preciso mesmo é me concentrar mais naquilo que estou fazendo. O equipamento de transporte. Este meu primeiro protótipo encontra-se praticamente concluído. As cavernas do disco têm como matéria-prima os garfos velhos que, dia após dia, fui colecionando ao longo de refeições sucessivas aqui na prisão dormitório. Já ouvi boatos de que estão atrás de algum safardana que anda subtraindo os talheres do refeitório. Outro dia fui abordado durante a refeição: “Você sabe me dizer se viu alguém levando garfos daqui deste recinto?”. Como não sei mentir, tive que apelar para uma linguagem metafórica: “Você quer dizer componentes de discos voadores?”. Ao que o serviçal respondeu com um sorriso no rosto e uma pitada de ironia: “Essa foi boa! Deixa pra lá; um imbecil como você não seria capaz deste tipo de coisa”. Foi por pouco. Os garfos – como muitos sabem – são talheres metálicos que apresentam extremidades distintas: uma usada para o manuseio e a outra, apresentando quatro dentes, para o transporte de pequenas porções de alimento do prato à boca. Podem também ter a serventia de elementos que se encaixam longitudinalmente e são suficientemente maleáveis para a composição do formato elíptico das cavernas do meu disco. Para o arranjo e a fixação dos dois conjuntos perpendiculares de onze cavernas eu usei clipes comuns de escritório – ou shear clips – que tem também esta propriedade – além daquela de manter solidárias as folhas soltas de papel. O meu equipamento de transporte é revestido externamente pelas cortinas da janela de minha prisão dormitório em forma de prisma.

 

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Mas foi o sistema de potencialização giroscópica da máquina voadora que me deu mais trabalho. O eixo de spin é a direção z do sistema referencial do equipamento de transporte – conforme descrito na Figura (1). Dois lápis foram alinhados ao longo do eixo z; com as suas afiadíssimas pontas de grafite opostas; e mantendo o contato exatamente na posição x = 0.0mm, y = 0.0mm e z = 0.0mm; o centro de gravidade do disco voador. Penso que, através da potencialização giroscópica do nível subatômico da matéria, dar-se-á o alinhamento de todas as partículas da máquina voadora com relação ao eixo z de spin – possibilitando o deslocamento para além dos domínios deste cárcere. Levei horas na afiação cuidadosa das pontas de grafite dos lápis – posto que o carbono é elemento químico essencial para o processo. O carbono – de símbolo C; é composto por seis prótons, seis nêutrons e seis elétrons; 666 – é um elemento notável por várias razões: Suas múltiplas formas alotrópicas incluem desde uma das substâncias mais reles e frágeis – a grafite, amorfa – até uma das substâncias mais duras e preciosas – o diamante, cristalino – da natureza. É o pilar da química orgânica, e parte integrante de todos os seres animados. Além disso: Apresenta uma grande afinidade para combinar-se quimicamente com outros átomos pequenos, incluindo outros átomos de carbono, o que possibilita a sua organização em enormes cadeias moleculares. Finalmente, o aparato de ignição consiste de alguns chumaços de Bombril que envolvem as pontas dos lápis. Estes serão embebidos em álcool pouco antes do lançamento. E será ateado fogo no instante final da contagem regressiva. Espero que nesta noite dê tudo certo. Uma vez iniciado o processo, não há como interrompê-lo – dada a sua natureza irreversível.

 

(viii) the dragon swallowing its own tail. Se você me permite – e ainda que não – iniciarei a narrativa de hoje rememorando, do final da tarde de ontem, alguns momentos que me foram bastante significativos. Depois de mais um dia extenuante de trabalhos forçados sou deixado na prisão dormitório em forma de prisma. A ansiedade é grande. Dentro de poucas horas, partirei para uma longa viagem, levado pelo equipamento de transporte que venho desenvolvendo há dias. Boto camiseta, tênis, bermuda e parto para uma corrida pelas cercanias. O céu limpo do azul verdadeiro. O sol pouco acima da linha do horizonte. E abaixo dela, o vale de um verde que transcende a esperança para vir a ser a completa teimosia da existência. A atividade física intensa libera as endorfinas pelas minhas artérias. Viaja junto às hemoglobinas, ligadas ao oxigênio, através de múltiplas ramificações dos meus órgãos. Por fim, vêm saturar a massa amorfa e pensante de um leve torpor. De repente, a estrada Geraldo Biral me aparece como oportunidade única de fuga pelos meus próprios meios – minhas pernas e os meus pés. Aperto o passo. Uma curva para lá, outra para cá, às encostas do planalto. É quando me deparo com a visão etérea e inesperada do morro de Sathya Sai Baba. A desilusão é um pesado fardo que carrego nos meus ombros. Uma hora e dois minutos depois estou de volta à prisão dormitório em forma de prisma. Todos os caminhos da boca-do-tatu terminam nela mesma. Como uma cobra a devorar o seu próprio rabo. A boca-do-tatu é bastante e o suficiente – capital e interior dela mesma. Pode ser tudo ao mesmo tempo em que não é nada. Tomo um banho e me encontro com alguns companheiros do cárcere para uma pizza. Eles parecem estranhar o sorriso implícito no canto de minha boca. Esta será para eles apenas mais uma noite que acabará em pizza – não para mim. Checo o relógio ao adentrar minha cela na prisão dormitório em forma de prisma. São exatamente 22h22m. Preparo então o disco voador para o lançamento. Entro dentro dele. Embebo os chumaços de Bombril do aparato de ignição com golfadas generosas de álcool. Inicio a contagem regressiva: x, ix, viii, vii, vi, v, iv, iii, ii, i, fogo! Ouço o estranho crepitar, como que aquele dos gravetos finos ateados numa lareira. E então uma grande explosão. Desperto de alguns momentos de inconsciência com os gritos de toda uma corporação da brigada de incêndio. É grande a claridade. Labaredas por todos os lados. Por um instante me imagino como que criatura liberta das catacumbas da boca-do-tatu. O fogo queima o meu corpo. Mas a dor física é irrelevante frente à restrição da liberdade imposta pelo claustro nas terras de ouroboros. Entretanto, só quando os bombeiros arrebentam a porta a machadadas é que percebo, de fato, a minha triste condição. Por algum motivo (que ainda desconheço) houve uma falha catastrófica no meu mecanismo de transporte. A cama, os armários e minhas roupas – toda a minha cela – foram consumidos pelas chamas liberadas de forte explosão que se deu imediatamente após a ignição do disco voador. Fato é que escapei com vida – não sei dizer se isto é bom ou se é ruim. Este episódio certamente aumenta ainda mais o meu ônus. E prolongará a minha pena. Boa parte do meu corpo apresenta agora as feridas das queimaduras sofridas. Vim depois me aperceber que, o estranho crepitar ouvido pouco antes de eu perder a consciência, era na verdade o som de meu cavanhaque se desvanecendo em cinzas. E é dele que eu sinto mais falta. Quando penso, e levo a mão canhota de encontro ao queixo, toco sua protuberância imberbe que me agride. Por vezes perco a linha de raciocínio. Conseqüentemente, minhas faculdades mentais encontram-se seriamente comprometidas. Pouco me resta do quase nada que eu tinha.

 

            antes que

            pouse por detrás dos morros

            e das serras na boca-do-tatu

            o vento insano

            despe de todos os nossos pudores

            para a pureza de uma noite escura

            ela permite que a toque

            apenas as estrelas de luz

            noite de lua crescente

            o verde que te agride já foi deitar

            por entre as frestas do vale imaginário

            o universo numa corda bamba

            cada qual tem o seu jeito de enxergar

            é da personalidade do cara

            deixa ele em paz

 

(ix) como não chegar aqui: a estória dela mesma. Hoje inicio a parte mais complexa destes escritos alfarrábios. Tenho a consciência de que não será nada fácil descrever com necessária clareza as razões deste meu esforço narrativo. Peço a você leitor – que chegou até aqui – que tenha a paciência e saiba perdoar-me caso eu venha a falhar – novamente! – neste meu intento. Já há alguns dias – logo após o episódio da falha catastrófica do mecanismo de transporte; e enquanto as feridas ainda ardiam vivas à flor de minha pele – cheguei à triste conclusão de que não há retorno da boca-do-tatu. Vim parar aqui, onde permanecerei para todo o sempre – ou pelo menos, até o final amargo desta minha existência sobre o planeta. (E quem sabe qual o destino do ser humano após a morte?) Bem, percebi então que todo este meu empenho na fuga do cárcere de boca-do-tatu não passou de um dispêndio vão de minhas parcas energias. Mas, se minha sina é mesmo esta de orbitar as cercanias da terra de ouroboros – a circumambulation de Jung – o que me resta? Por que não canalizar as minhas forças para fora destes domínios? Por que não tentar alertar àqueles que aqui não habitam dos perigos e das angústias deste mundo? Quiçá, transmitir um pouco desta minha experiência – como forma de que outros seres humanos não venham a cometer erros semelhantes àqueles os quais cometi – para que não corram os riscos de serem recolhidos ao cárcere na boca-do-tatu. Planejei, então, meticulosamente a edição destes diários do prisioneiro. Estes seriam administrados na forma de pílulas diárias às criaturas pelas quais tenho grande apreço e afeição. “Enquanto inicio a grafia destes pensamentos, me assombro ao imaginar que os simples movimentos repetitivos de minha mão canhota são permeados por ondas de alta freqüência, que são aquelas devidas às sinapses de alguns neurônios – que ainda me restam”. Muitos jamais leram – ou sequer lerão – estes escritos alfarrábios – ainda que estes lhes tenham sido enviados por correspondência cibernética diária. “Outros, mais modernos, já sabem isto tudo de cor. As cabeças estão para nós, os humanos, assim como os feromônios para as abelhas, ou os bigodes dos gatos”. Outros, entretanto, responderam-me com mensagens de conforto e motivação. Estas correspondências – oriundas do universo exterior – tocaram-me profundamente e foram extremamente reconfortantes para minha alma. Cabe deixar registrado os meus mais sinceros agradecimentos a vocês. “Vim para o cárcere em regime semi-aberto devido à sucessão dos erros passados que cometi. Estes eventos reverberam para frente e para trás no tempo, causando os desdobramentos que aqui me cabem narrar”. Daqui de minha cela na prisão dormitório em forma de prisma, posso até imaginar as discussões acaloradas sobre estes textos malditos que habitam as rodas de pensadores nos cafés da discórdia que permeiam o universo afora. Esta é a estória dela mesma. Seu objetivo é aquele de orientá-lo como não chegar aqui.

 

(x) os segredos da alquimia. Sinto desapontá-los logo à chegada do epílogo destes escritos alfarrábios. Mas não sou portador deste Saber – se fosse, não haveria a razão para eu habitar este planeta, tão distante do Sol. E se você busca o conhecimento da arte da transmutação de reles metais em ouro – para a redução do ciclo de manufatura das máquinas voadoras, para a garantia do atingimento de metas ou para o simples aumento de tua fatia da participação nos lucros e nos resultados – perdeu o seu precioso tempo. Por que o verdadeiro segredo da alquimia está na anti-matéria de tudo aquilo que é o objeto de ação do superior hierárquico. Mas algumas coisas têm ajudado a aumentar minha tolerância a esta condição insustentável aqui na cela da prisão dormitório em forma de prisma. E acho que posso passar as receitas de alguns destes medicamentos paliativos. Um abraço gostoso e apertado. A arte da transformação das lágrimas num sorriso implícito no canto de tua boca. O método da regressão mental para as brincadeiras de uma criança. O exercício diário da liberdade de teu pensamento. Dizer sempre – ou escrever, quando distante – “eu te amo” a quem você gosta. A dor é grande. As chuvas de verão e o calor tropical saturam o reino vegetal de um verde insuportável. Existem formas de tortura ortodoxas e surpreendentemente cruéis. Ainda assim, e apesar de tamanha contrariedade, a vida aqui vale a pena. Por fim, eu desejo a vocês que não sigam os meus passos para dentro da boca-do-tatu.

 

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Nota do Autor: Este texto é dedicado ao Mestre Fernando Iguti.

 

 

Um adeus com-puta-dor

fevereiro 20, 2009

 

a morte é hoje

a dor do momento

nada resta ao tormento

da eterna dor

dói pra sempre

infinito

dói demais

 

 

mojica

 

São muitos os que morreram nos dias de hoje.

 

Este poema é dedicado ao Papada, vulgo Noel Rosa.

 

 

 

 

Estimado Jacinto,

 

A tua garrafa está cheia até a telha de um destilado ruim e barato. Faz com que enxergue um cenário opaco e distorcido através do vasilhame que – dada a tua incapacidade de transcendência – imagina puro; cristalino; quiçá, libertador. Por isso não o recrimino pela crítica que ora me dirige; ao contrário agradeço por ter sido objeto de atenção nalgum momento de tua pífia existência. Isto é antes motivo de orgulho; regozijo para a alma clara; cansada de vagar desapercebida às trevas da infinita Terra.

 

Antes de discorrer em minha defesa, rogo ao meu Santo forte a capacidade de fazê-lo à altura de uma ambição desmedida –enorme a energia empregada no trabalho antigo, simples, natural. Trilho no qual tantas locomotivas já descarrilaram, que é coisa de meter medo. Mas não me acanho. Pratico o exercício do salto entre os abismos pelas próprias pernas.

 

Abandona, então, a sisudez dos números para as artes práticas das idéias. Faz de conta de um artesão das palavras. Ofício que é ao mesmo tempo nobre e pobre; posto que não há de servir de alimento para o corpo (ou de sustento ao indivíduo); mas de elevação da alma – tão longe quanto ela possa ir. Deixa, que eu te levo.

 

Escrever é a expulsão de uma dor absoluta. A nossa Terra tem inúmeras frestas para magníficas vistas: mas quão efêmeras! Todo resto é a mazela humana. Lama da qual o trabalhador lentamente vai se despojando. Fica registrado o anseio infinito, que de tanto querer, um dia depois do outro, é da matéria pensante que o futuro se molda.

 

A frase reverbera aos ouvidos do surdo que lê. A palavra sensibiliza a retina do cego que ouve. A estória da estranha melodia entoada pelo coral de mudos – por mais breve que seja o instante. Não terá sido vão o esforço. Pode ser ainda difícil a compreensão para aquele que tem os sentidos entorpecidos pela abundância (vê, ouve, fala). Mas não faça de desentendido. Assim como o ignorante ri da boa piada, há de chorar o insensato a sua lascívia.

 

Pega então tua garrafa (agora vazia). Bota dentro dela um barco, uma caravela. Deixa soprar o vento na vela. Põe isso na tua cabeça. Antes que seja tarde.

 

 

Jorge Xerxes,

 

Escrito aos dias de hoje.

 

 

Carta ao pulcro poeta

fevereiro 7, 2009

Caro Xerxes,

 

Você sabe que a proposição inversa dos teus escritos agride, invariavelmente, as plantas submersas no oceano Pacífico. Mas a que custo? Quando as asas bateram para longe e seria possível ascender às estrelas, por que Você não foi? Xerxes, eu sou a possibilidade que Você não realizou. O teu oposto nas idéias e no cotidiano dos dias. Sua mente degenerada mais parece um motor velho. Desses que consome bastante gasolina. Enquanto Você passa os dias escrevendo, cá estou eu a beber as garrafas pelas avenidas dos bares afora. Phoda-se Xerxes! Você perdeu. E perdi eu. Por que eu sou Você. Mas Você não sou eu.

 

 

Jacinto,

 

Escrito às horas de agora, anos depois de Cristo.