Boite Estrela

fevereiro 16, 2011

There’s a time when the operation of the machine becomes so odious – makes you so sick at heart – that you can’t take part. You can’t even passively take part. And you’ve got to put your bodies upon the gears and upon the wheels, upon the levers, upon all the apparatus and you’ve got to make it stop. And you’ve got to indicate to the people who run it, to the people who own it that unless you’re free, the machine will be prevented from working at all. Mario Savio, Sproul Hall Steps, December 2, 1964

 

Paulo observava atônito o irmão largado naquele leito de hospital. Dividia o quarto – quente como o inferno – com mais duas pessoas: a senhora obesa idosa e um menino magro careca. O tratamento oferecido pelo SUS naquele hospital de periferia era como morte lenta. Muito longe para que por lá passassem os repórteres e a gente da tv. Nesses lugares é que se aprende como a vida é cruel – de verdade. A fragilidade de Gustavo era o oposto da imagem que ele tinha do irmão mais velho até então. O que restara daquele seu vigor, da determinação inabalável, exemplo de impetuosidade? Agora era somente ele ali, a apoiar o irmão agonizante. 

O médico havia lhe dito que o golpe no pescoço e o corte causado pelo estilhaço de garrafa haviam subtraído permanentemente a capacidade de articular a fala normalmente. O que seria do Gustavo extrovertido, falastrão de outrora? Talvez reaprendesse a se comunicar com a ajuda de um bom fonoaudiólogo, se dispusesse a explorar novas possibilidades do ar que seria capaz de expirar dos pulmões. Mas isso não era certo, havia perdido muito sangue, o mais importante é que ainda estava vivo, isso sim, era praticamente um milagre – havia lhe dito o médico. Um milagre – pensou Paulo. Será que esse  médico de bosta faz idéia do que está falando? Um milagre o caralho. Gustavo estava fodido e entrevado. O sangue lhe esguichava pelas têmporas. Cada batimento de seu coração ele sentia lá, era como uma martelada na cabeça. Sua sede de vingança ele procurava desesperadamente conter.

Subitamente, Gustavo deixou daquele seu estado de torpor. Parecia querer comunicar-se, dizer algo ao irmão. Paulo lhe estendeu um pedaço de papel e uma esferográfica. Com alguma dificuldade, Gustavo tomou nota, algumas poucas palavras. Depois entregou o panfleto ao irmão, com o olhar soturno. “Boite Estrela, Jacinto” – Paulo ficou a matutar o significado daquilo.

Judite despertou-o do sono agitado. Foi um alívio. Judite disse que Paulo estava agitado, mexendo-se muito na cama e suava horrores. Também com um pesadelo daqueles, remoeu com seus botões. Era meio da noite. Ele foi até a cozinha, abriu a geladeira, serviu-se de um copo de leite e sorveu o líquido até o fim – como que para amainar os seus ânimos. Então se deitou novamente, deu um beijo no rosto da esposa (que sorriu) e deixou-se transportar novamente pelos braços de Morfeu.

Quando o rádio-relógio o despertou, Paulo recordou de imediato do pesadelo. Parecia tão vívido e real que era coisa de dar medo. Entretanto, nada comentou com Judite à mesa do café da manhã. Seguiram juntos no velho Ford Escort de cor azul metálica até o centro da cidade. Deixou Judite no banco, para que ela desse cabo das contas de rotina. Fato é que os negócios não iam nada bem. A pequena empresa de representação de produtos de informática que, a primeira vista, lhes parecia um negócio tão atraente, agora basicamente garantia-lhes a subsistência. Paulo andava sobretudo arrependido de ter convidado o irmão para mudar-se do interior e ajudá-los na loja. Basicamente Paulo cuidava da administração dos negócios e contato com os fornecedores, Judite corria os bancos pela manhã e atendia na loja, enquanto Gustavo visitava as empresas da cidade e região, era incumbido das entregas e de arrebanhar clientes.

Ainda bem que havia sido um pesadelo apenas, refletiu Paulo. No último ano, desde que se mudara para a cidade grande, Gustavo não tinha mais se metido em encrenca, como noutros tempos. Quantas vezes ele, e até os seus pais, na época em que ainda eram vivos, tiveram de interceder em socorro ao irmão, sempre metido em bravatas, confusões e disputas pelo mulherio. Apesar disso, Gustavo era carismático, divertido e a natureza havia sido bastante generosa ao seu semblante e físico avantajado. Em resumo: dava mais alegria que tristeza, como acontece com quase todo o membro de quase todas as famílias.

Aquele havia sido outro dia quente; muito atarefado no escritório e, apesar disso, de poucos negócios. Judite e Paulo chegaram a casa por volta das oito da noite. Tomaram banhos separados (ela primeiro, enquanto ele ficou na tv). Depois jantaram uma pizza requentada do dia anterior. Eles pouco conversaram e, na seqüência, foram para a cama. A tv era o álibi perfeito para uma convivência vazia de significados, perfeita para aqueles dias inócuos, que transcorriam como ritos de passagem entre o nada e coisa alguma – absorvidos que estavam pela profunda apatia, assim como acontece com a grande massa dos casais medíocres.

Mesmo que os anos restituam a pureza e a ingenuidade dos atos, ainda assim haverão cicatrizes forjadas pelos neurônios, assim como as naus trazem os seus sinalizadores luminosos elevados, na intenção de serem percebidas à distância. Sim, toda a vivência serve de matéria-prima a qual o futuro se molda – para o bem ou para o mal. Importante é a interpretação da experiência, a depuração do espírito, ao longo do empreendimento de uma vida, do que virá pela frente.

Adentra a birosca enevoada e fétida pela fumaça dos cigarros. Aquele som apelativo das músicas de corno, aquele ar noir conferido pelas conversas circulares dos embriagados, daquele apinhado de homens reles na disputa por aquelas parcas e descuidadas meretrizes. Paulo pensa no risco que está correndo. Judite poderia despertar a qualquer momento, aperceber-se de sua falta. Não fossem os remédios que ela toma para dormir. A espelunca tem suas paredes sujas e a tinta desgastada. Certos cantos, mais propensos às infiltrações, estão recobertos de lodo. Alguns dos quartos não têm portas, e desses é possível ouvir os gemidos e grunhidos do sexo vadio. Isso parece alavancar a produção da testosterona aos brutos e assegurar o consumo dos aperitivos: da cerveja de rótulo vagabundo e da aguardente.

Ele observa através de uma fresta deixada pela porta entreaberta e vê a frenética dança de uma puta de longos cabelos ruivos. Ela sobe e desce guiada pelo falo de um homem rude, trabalhador braçal. Seu gemido é cativante como se não pertencesse a esse mundo. Jamais havia ouvido uma mulher gozar daquela forma, tão justa, sincera e eloqüente. Era um cântico que transcendia a atmosfera do ambiente para o transporte através das asas do sonho.

Amanheceu um dia quente como o anterior. A rotina de trabalho de Paulo, Judite e Gustavo permaneceu inalterada, de modo que pouco – ou quase nada – é digno de nota nessa inusitada narrativa. Exceto que o estranhamento de Paulo era crescente, dado as suas recentes experiências oníricas. E, infelizmente, era impossível se desvincular completamente destes processos inconscientes do seu estado de espírito em vigília. Os seus sonhos deixavam-no ainda mais exausto e irritadiço do que era esperado dele. Naquele dia almoçaram os três, numa cantina italiana próxima à loja. A comida era bem preparada e oferecida em troca de um preço justo: mesa com saladas variadas, um prato de massas a escolha do freguês e duas opções de sobremesa – fruta ou doce. Judite e Gustavo aparentavam visivelmente maior descontração que Paulo ao longo da refeição, apesar de todos estarem cientes das dificuldades pelas quais enfrentavam nos negócios em família. Certas preocupações não são mesmo para serem postas à mesa.

Durante a tarde Paulo pesquisou via internet e na lista telefônica pela tal “Boite Estrela” sinalizada pelo seu pesadelo recorrente sem, entretanto, obter qualquer referência nas imediações da região metropolitana onde morava. Refletiu seriamente sobre a carga de estresse que vinha sofrendo no trabalho e a real necessidade de tratamento médico. Mas os compromissos quotidianos sobrevieram e ele abandonou essa natureza subjetiva de elucubrações, partindo àquelas de ordem prática: contato com fornecedores, avaliação das duplicatas pendentes e projeções das vendas de curto prazo. A noite terminou com Judite e Paulo largados na cama, atentos à televisão ligada, até que atendessem a um novo chamado de Morfeu.

Segue pelo calçamento irregular paralelo à rua estreita de paralelepípedos, naquela noite o orvalho é denso, quase chuva. A luz emana fosca da pequena passagem que leva ao inferninho. Ainda do lado de fora, observa a placa metálica, carcomida pela ferrugem dos anos: “Boite Estrela”. No interior da bodega chama-lhe a atenção um senhor de modos rudes e simplórios, vez por outra exprime aquela sua gargalhada insana e parece monopolizar a atenção do círculo de freqüentadores ao seu redor – dentre velhos, os marmanjos e algumas putas. Seu olhar é doutro mundo, os globos rubros pela irrigação sanguínea característica do abuso de bebida e tabaco. Ele parece aperceber-se da aproximação de Paulo. Ergue o braço esquerdo e faz um sinal com a mão, convidando-o a aproximar-se. O pessoal da roda dirige seus olhares atentos em direção a ele. Quando está a dois ou três metros de Jacinto, este lhe aponta, com o punho cerrado e o dedo indicador em riste, um corredor lateral ao salão principal.

É escuro, ermo, Paulo não havia sequer notado este corredor anteriormente, dava numa escada rústica, de madeira, que por sua vez, levava ao piso superior da espelunca. Ele reconhece aqueles frêmitos de fêmea vindos de um dos quartos, cuja porta está entreaberta. Aproxima-se, o piso range, mas o casal parece indiferente, absorto pela fornicação. Paulo observa, atento e silente. Agora a ruiva de cabelos longos está de quatro, o homem penetra-a vigorosamente o ânus. Ela urra num misto de dor e prazer. Seus movimentos lembram um cavalgar selvagem, o homem toma-lhe os cabelos com uma das mãos, fazendo-a erguer o tronco, e com a outra mão agarra o seio, firme, farto.

De súbito o frenesi da penetração amaina, a mulher lança um olhar em direção à porta entreaberta e Paulo identifica o semblante da mulher. Ele fica atônito, como é possível, o coração parece saltar-lhe a boca: é ela mesma, sua esposa Judite, quem está fodendo com Gustavo. Paulo desperta encharcado de suor. Observa Judite deitada ao seu lado, na cama, num sono tranqüilo. A mulher esboça um discreto sorriso, através do alongamento das extremidades de sua boca e a sutil contração das pálpebras. Paulo levanta da cama. Segue até a cozinha, a cabeça lateja de uma dor lancinante, como se seus miolos é que houvessem sido fodidos. São quatro horas e vinte e dois minutos da madrugada. Ele enche um copo d’água, engole um comprimido analgésico e sorve o líquido na seqüência. Retorna para o seu quarto e tenta retomar o sono, em vão.

Naquela manhã, assim que Gustavo chegou à loja, Paulo chamou-o e também a Judite para uma reunião de trabalho. Ele apresentava olheiras marcantes, suas mãos estavam trêmulas. Mostrava-se realmente abatido. Paulo explicou que a situação financeira do negócio não ia nada bem – e isso não era novidade para nenhum dos três. Disse que precisava conter gastos e, avaliando o benefício dos custos fixos, havia chegado à conclusão de que, realmente, precisaria dispensar o irmão do trabalho. Caso contrário a empresa e todos eles iriam, certamente, à bancarrota. Gustavo aquiesceu. A vida não era fácil para ele, e vice-versa – ele não se deixava abater facilmente. De certo arrumaria um novo emprego, noutra empresa. Provavelmente voltaria para o interior, de onde tinha vindo para assumir o cargo ao lado do irmão e da cunhada. Judite não interveio. Os três pareciam tristes com a novidade. E o dia transcorreu assim; apático e lento.

Algumas semanas depois, Gustavo mudou-se para outra cidade. Arrumou um emprego como vendedor de materiais de escritório. Meses se passaram. Aos poucos, os encadeamentos oníricos recorrentes de Paulo foram cessando. A empresa de representação do casal se reafirmou no mercado. Vieram os lucros. Uma fase próspera. Até a rotina de Paulo e Judite adquiria, agora, cores vivas. Saiam para jantar fora algumas vezes na semana. Iam juntos ao cinema. Beijavam-se mais, e exercitavam o papai-mamãe com a freqüência de duas a três vezes por semana. Mas Paulo jamais revelou a Judite quanto aquele seu pressentimento – infundado – de que ela e o cunhado haviam sido amantes. É sabido que o tempo se encarrega de por as coisas nos trilhos: os pingos nos seus devidos is e realizar os necessários cortes dos tes.

Certo dia, logo pela manhã, Paulo recebeu uma chamada inesperada do hospital da cidade na qual Gustavo estabeleceu residência. Paulo informou Judite do ocorrido, disse que precisaria deixar a loja naquele dia, tomou o velho Ford Escort azul metálico e rumou para lá.

Paulo observava atônito o irmão largado naquele leito de hospital. Dividia o quarto com mais duas pessoas: uma senhora obesa idosa e o menino magro careca. A fragilidade de Gustavo era o oposto da imagem que ele tinha do irmão mais velho. O que restara de seu vigor, daquela determinação inabalável, exemplo de impetuosidade? Agora era somente ele ali, a apoiar o irmão agonizante.

O médico havia lhe dito que o golpe no púbis e o profundo corte no pênis, causado pelo estilhaço de garrafa, haviam subtraído permanentemente a capacidade de levar uma vida sexualmente ativa. O que seria do Gustavo extrovertido, falastrão de outrora? Talvez pudesse colocar um implante com a ajuda de um bom cirurgião, se dispusesse a explorar novas possibilidades do amor. Gustavo havia perdido muito sangue e o mais importante é que ainda estava vivo, isso sim, era praticamente um milagre – disse-lhe o médico. Gustavo estava fodido e entrevado. O sangue esguichava pelas têmporas de Paulo. O médico lhe perguntou o que ele pensava disso, antes de abordar pessoalmente o paciente quanto ao sombrio prognóstico. Paulo sacou um cigarro do bolso da camisa. Acendeu-o, tragou lentamente, expirou a fumaça, então ele disse: eu acho é pouco.

Este artigo apresenta dezesseis fragmentos coletados a partir da leitura cuidadosa de “La Scuola degli Dei” (título original em italiano), de Stefano Elio D’Anna. O livro pode ser encontrado sob o título: “A Escola dos Deuses”, Stefano Elio D’Anna, ProLíbera Editora, 396 páginas, ISBN 978-85-61080-00-6, (2007). Espero que apreciem os excertos colhidos; e que este breve artigo ajude a conquistar novos leitores para essa obra de beleza singular.

i) “Ler este livro foi uma das grandes viagens que já empreendi. O autor nos leva a trilhar o caminho para nosso interior. Em ritmo ágil, vai levando o leitor a fazer um novo pacto com a vida”. “O sal da vida está em ousar a ser quem se é por dentro. Pessoas que estão firmemente ancoradas em seu interior têm o condão de ver barreiras imensas como pequenas dificuldades circunstanciais. Têm coragem e clareza para mudar a realidade para si e para os outros”. Hebert Steinberg na Apresentação ao leitor brasileiro, pp. 7.

ii) “Este livro é um mapa, um plano de fuga. Seu objetivo é mostrar a trajetória que um homem comum seguiu para escapar da hipnótica narração do mundo, da lamentosa e acusatória descrição da existência, para escapar da trilha de um destino já traçado. Este livro jamais teria existido, nem eu poderia ter escrito uma linha sequer, não houvesse encontrado o Dreamer e Seus ensainamentos. A Ele, o Dreamer, dedico minha infinita gratidão por ter me conduzido pela mão do mundo do sonho, no mundo da coragem e da impecabilidade, onde o tempo e a morte não existem, e a riqueza não conhece ladrões nem ferrugem”. Stefano Elio D’Anna no Prefácio à obra, pp. 9.

iii) “Reais guerreiros não lutam pela supremacia ou pela hegemonia sobre os outros; não lutam pela glória, nem pelas posses ou recompensas, mas para ganhar a única coisa que realmente importa: a própria liberdade interior”. “Tratei de entrar na questão da diferença entre a impassibilidade – apatheia – pregada pelos estóicos, e a indiferença da alma em relação às paixões e aos pensamentos externos da mística lupeliana. Para Lupelius, a impassibilidade é conferida pela recuperação da integridade, aquela unidade do ser que é uma condição natural e da qual o ser humano se esqueceu. Do vazio que a alma cria, ao se liberar dos pesos das coisas exteriores e carnais – sem mais a ilusão de que existe algo fora de nós –, nasce um estado de ser que é um contínuo, um natural movimento em direção à eternidade, à imortalidade, ao ilimitado”. “Tudo aquilo que sinteticamente chamamos de mundo, os eventos e as circunstâncias da nossa vida, são projeções nossas. Se somos sabedores disso, podemos projetar somente a vida, a prosperidade, a beleza, a vitória. Se somos vigilantes, atentos, podemos projetar liberdade, um mundo sem obstáculos, sem limites, sem velhice, sem doença nem morte”. pp. 59.

iv) “Sua fé mais irremovível… sua convicção mais nociva é acreditar que existe um mundo externo a você, alguém ou alguma coisa de quem depender, alguém ou alguma coisa que possa lhe dar algo… ou tirar-lhe algo, escolhê-lo ou condená-lo. Se um guerreiro acreditasse, só por um minuto, em uma ajuda externa, perderia no mesmo instante a sua invulnerabilidade”. pp. 97.

v) “Mude o sonho! É impossível deixar os trilhos da repetitividade, da recorrência, se não se muda o sonho. Você deve abandonar o seu destrutivo modo de sonhar. Sonhe um sonho novo, aprenda um jeito novo de sonhar, um sonho em que o poder da vontade comanda, o poder do amor cria e o poder da certeza vence. Seja mais sincero, mais honesto com você mesmo, e perceberá que atrás da sua falsa convicção de querer mudar sua vida, existe um secreto projeto de perpetuá-la assim como é. O mundo é assim porque você é assim”. pp. 125.

vi) “Desde quando o Dreamer me havia aberto os olhos sobre a condição empregatícia, revelando-a como uma moderna transposição da escravidão, aquele exército de homens e mulheres que se encaminhava ao trabalho parecia um enxame de insetos movido por uma necessidade cega. Todas as manhãs via-os invadirem andares inteiros de grandes edifícios, ocuparem milhões de celas, pequenas como alvéolos, e dominá-las com o seu zumbido. Nas suas glândulas transportavam uma espécie de vida em estado limoso: uma carga de pensamentos escuros e o xarope denso das suas emoções. Enquanto eu mesmo dirigia-me à minha cela, pensava na infinita população planetária destinada, como eu, a despender nas organizações a maior parte da própria vida em troca de uma retribuição. Perguntava-me qual era o significado evolutivo de todo aquele esforço e para onde era dirigido o afã de tantos homens engaiolados no espaço hipnótico dos seus papéis e funções. Dentro e fora das organizações, via-os atormentados pelo medo; reconhecia neles as minhas angústias, a minha infelicidade. Sob a sutil película de racionalidade, eu via escondida a lógica conflituosa, o pensamento destrutivo, aquele impulso de morte que nos estimula incessantemente a prejudicar primeiramente a nós mesmos e, depois, aos outros. Sob camadas emocionais sedimentadas há séculos, reconhecia a degradação do ser, resultado de ansiedade, dúvidas, inseguranças e de um enorme medo, seja de viver, seja de morrer”. pp. 175.

vii) “O medo é a morte dentro. O herói é o homem em ausência de medo, em ausência de morte interna. Herói… Eros… amor, a-mors significa imortal. Herói é um grau na escala humana que não se obtém no clamor da batalha, mas em solidão, vencendo a sim mesmo. A batalha serve somente para tornar visível o que o herói já conquistou no invisível. Sua invencibilidade ou invulnerabilidade é simplesmente a prova dos nove de alguma coisa que já aconteceu no ser, o teste de tornassol da sua vitória sobre a morte”. pp. 209.

viii) “O mundo é o desenvolvimento no tempo daquilo que sonhamos… Um compromisso é sempre consigo mesmo… Ou melhor, com uma parte de você, mesmo que você não a conheça. Pessoas e eventos surgem e se dissolvem seguindo um roteiro já escrito no ser”. “Quando você planifica e acredita nisso, está se distanciando do mundo real… Mais você se convence de que os compromissos e encontros acontecem como programados, mais você reforça o seu senso de morte… E assim você se vê com pessoas abúlicas, que planificam e programam como você, e iludem-se de estar escolhendo ou decidindo sem jamais reconhecer a própria impotência”. “Um dia sua agenda será a de um ser humano livre, a agenda de um ser humano que realmente faz porque sabe que tem a solução sempre consigo… que é ele a solução. Você interpretará os encontros e os papéis e deixará o mundo livre para acontecer… do melhor modo possível. O mundo tornar-se-á sua obra-prima, nem esforço ou pressão. Somente então a sua agenda será a agenda de um verdadeiro líder… terá só páginas em branco”. pp. 234.

ix) “Enquanto você não redescobrir sua vontade sepulta, enquanto você não alcançar sua verdadeira liberdade, sua integridade, o passado estará sempre à espreita para reconduzi-lo àquilo que é velho e deteriorado. A ignorância está sempre a um palmo de distância… Se você deixar de vigiar e se esquecer do sonho, será pilhado num instante e, com você, cada conquista, cada entendimento, ainda que perseguidos a duras penas, degradarão. Não importa quanto trabalho você tenha dedicado. Enquanto você não atingir a totalidade do ser, estará sempre em equilíbrio instável sobre o abismo da sua ignorância… A totalidade do ser significa domínio de si; é o resultado de um longo trabalho de Escola… Antes disso, um homem não é mais que um sonâmbulo suspenso entre o nada e a eternidade”. pp. 259.

x) “O horror é ter transferido Deus para fora de nós”! “Era uma vez um ser sem religiões. Elas surgem quando, por um abalo de sua religiosidade, o ser se degrada e transfere a divindade para fora de si”. pp.278.

xi) “Quando alguma coisa é bem-feita, é feita para sempre! Todo o universo é informado disso, e você não terá mais necessidade de repeti-la. Depois de uma breve pausa, completou: Somente a imperfeição se repete. A perfeição não se repete nunca, porque continuamente transcende a si mesma. Uma perfeita crisálida deve cessar de ser uma crisálida perfeita e morrer para ter acesso a uma condição superior de ser”. “…com impecabilidade daquele gesto teria consertado para sempre seu universo pessoal… sairia de uma faixa acidental da existência, onde tudo já está programado, do nascimento à morte, e modificaria seu destino… O mundo é o reflexo, uma ressonância do ser…” pp. 291.

xii) “Quem ama aquilo que faz não depende. Quem ama não tem tempo para vender… Somente quem não ama pode ser recrutado, retribuído. Um ser humano que ama é impagável”. “Entre as grandes ilusões de quem trabalha, existe aquela de receber uma retribuição. Na verdade, aquilo que é considerado uma compensação, um salário, é somente um modesto, um parcial ressarcimento pelos danos produzidos pela condição de dependência”. “A economia não está baseada no trabalho, mas na felicidade. A felicidade é economia”. “Aos sete anos, os espartanos deixavam de depender. Eram colocados em uma escola de coragem, em que se forjavam heróis, guerreiros luminosos, invencíveis. Atualmente, com a mesma idade, as crianças são incluídas no triste exército dos adultos. É observável a transformação que sofrem. O gosto pelo jogo, o frescor pelas impressões, o entusiasmo, a adaptabilidade, a coragem são substituídos pelas emoções aparentemente humanas (inveja, ciúmes, rancor, ansiedade, temor), pela aquisição de hábitos insanos (lamentar-se, o falar excessivo, o esconder-se e o mentir) e pela imitação daquelas deformações, que são as máscaras da degradação que sofreram. Engaiolar a liberdade da criança – cortar as asas do sonho – é uma imoralidade que a humanidade, assim como é, nem consegue ver. Sua paga são os inúmeros males sociais que a afligem e uma economia baseada no fracasso”. “Como o barulho do trem friccionando fortemente os trilhos, que depois de um tempo já não percebemos mais, assim se torna a dor da dependência para nós: uma coisa só com a existência, uma constante natural e, absurdamente, uma presença reconfortante na vida. Abandoná-la será, quando chegar à idade adulta, uma tarefa… quase impossível”. pp. 308.

xiii) “No paraíso não pode entrar nem mesmo um grão de inferno, sintetizou poderosamente. Para um indivíduo vertical, a perda de um só átomo da sua integridade significa perder tudo. Ele não fica em paz enquanto não restabelece a própria completude. Adicionou que santo, em seu significado mais profundo, além dos dogmas eclesiásticos cristãos, significa são, curado. Santo é, portanto, um ser integro, inteiro, que elegeu a completude, a unidade do ser como objetivo de sua vida; é um ser vigilante em relação aos seus estados e às suas emoções, porque sabe que o menor desvio da totalidade de si mesmo o precipita aos infernos da pequenez e da mediocridade”. “Na verdade, santos eram os homens e as mulheres que tinham simplesmente ousado acreditar em si mesmos; pessoas comuns que, sabedoras da própria incompletude, fizeram a viagem de retorno à integridade perdida”. pp. 318.

xiv) “Para poder atrair algo miraculoso, para poder dar concretude ao impossível, um homem deve elevar-se no ser, aproximar-se daquela condição de unidade, de integridade, que é seu direito de nascimento… É a parte mais verdadeira, mais concreta de cada um de nós: o sonho”. pp. 321.

xv) “A diferença entre nós é que meus átomos dançam bêbados do eterno néctar da imortalidade e você é atraído e governado por tudo aquilo que é mortal… Eu venci a morte e você investiu tudo na inevitabilidade dela”. “Eu fui você e você será Eu. Separam-nos éons de tempo e um abismo na consciência. Acelere”. “Tome uma decisão de uma vez por todas”! “Sonhe um novo sonho. Sonhe um novo mundo!… O mundo é como você o sonha. O mundo é como você o quer!… Você o quis violento, falso, mortal. O mundo será diferente quando seu sonho mudar. Seu contínuo lamentar-se do passado o conduz sempre ao velho…, retomou depois de uma longa pausa. Abandone-o! É tempo de dedicar-se em tempo integral…” pp. 327.

xvi) “Um ser humano que acredita em si mesmo dá um passo aparentemente no vazio, e somente então inevitavelmente verá o terreno materializar-se sob seus pés para dar razão à sua loucura luminosa… Crer para ver, e jamais o contrário”! pp. 331.

 Crédito da imagem: Hieronymus Bosch, The Garden Triptych, Left Wing, The Betrothal of Jacob and Sibylle by Christ (enlarged), 1469-70.