A noite cai, e com ela todo um leque de possibilidades agrestes. As luzes de velhas estrelas a povoarem timidamente o céu. Nessa noite, em particular, a lua, cheia, é o astro da vez. Grilos – aos montes – entoam cânticos, e os sapos são os répteis a marcarem o ritmo alucinante da dança iridescente de vaga-lumes. Uma noite assim está fadada aos cataclismos.

O terreiro enevoado pela bruma. As aves em seus poleiros: se fazem de cegas, de surdas, de sonsas. Medo que lhes arranquem as cabeças às dentadas. Lá se reunirão os homens para o encontro marcado.

Diogo é quem chega primeiro, vindo da direção norte. Pica um naco do fumo de rolo. Agasalha a grã-finagem na palha e prensa o cigarro caipira. Os homens vêm ter com ele. Cada um deles oriundo de uma direção de outros pontos cardeais – como se o enevoado dos terreiros fosse a Green(-)wi(t)ch dos esquecidos.

Antonio traz consigo bigode, o cenho franzido pela urgência e gravidade desmesuradas. Jorge é a própria visão da criatura em sua jaqueta preta de brim sujo surrado. Nos lábios de Jacinto o sorriso tênue dos loucos. Acendem o cigarro e tragam dele, solenes, a suprema quietude das idéias fixas.

Antonio avança com a perna esquerda. Ele traça com sua bota no chão o arco de meia circunferência. Depois inscreve um pequeno círculo cheio acima do desenho – uns cinqüenta graus à direita – com o giro do seu pé. Os outros olham, atentos, para as figuras desenhadas na poeira. Jacinto traga forte e traz a fumaça no peito. Jorge leva a mão direita para coçar a nuca. Antonio desfaz-se das formas geométricas.

– E então? Diogo é o primeiro a falar. A fumaça flui abundante das narinas de Jacinto. Lembra a figura de um dragão chinês. Os olhares dos homens se entrecortam.

– É mister abandonarmos as obras a repetirem-se assim. Diz Jacinto num tom inconteste (voz consoante aos cânticos de grilos, ritmo quente dos sapos, dança frenética dos pirilampos, das aves mudas de terror). – Daqui para frente só vamos tratar daquilo que trouxer a essência do ZO>O. Deixemos esta esfera celeste saturada do mesmo.

– Pena que nós nascemos da Terra nesses dias, das descobertas todas já feitas. Arrisca-se Jorge, um bocado inseguro. Antonio amassa a cinza da bagana no pé.

– Ao contrário. Cabe a cada um de nós buscarmos a saída: o elemento transcendente das idéias! Brada Jacinto.

– A es-sên-ci-a do no-vo. Disse Diogo, enfim.

 

Nessa estranha ordem de macumbeiros: ossos crucifixos de frango, goles de cachaça e velas pretas. Boto minhas mãos no fogo para que delas se queimem as palmas. Tiro das bolhas em agulhas espetadas de água. Sorvo dos corvos o vinho doce de seus corpos. Sinto as penas de suas mortes lentas. Mas não me deito em camas de espetos. Não sou magro e o diabo sabe bem o mal que faz aos outros. Anjos me ajudem a dormir cedo ante os meus olhos que quase se partem de tão rachados. Através dos mares distantes, em goles dessa salobra sabedoria náufraga. Arrasto-me pelas areias desérticas. Nem me lembro; nem sonho; nem sinto. De pé: ou deitado.. De pé: ou deitado.. De pé: ou deitado.. Salve as forças armadas! Salve o exército da salvação!

 

Oclusão

maio 18, 2010

À deriva. Diz-se das naus errantes, que vagam, sem destino, em alto mar. Mas é assim mesmo que Hamilton se sentia. Mais um pé na bunda: resultado da recente entrevista de emprego. Banho tomado, cabelo cortado e penteado para o lado. Vestido naquele terno em corte démodé. Um tanto acima do peso. Dicionário (?!?!) debaixo do braço para o suposto apelo intelectual. Toda trajetória de sua vida parecia culminar naquele exato momento. Síntese da obra: Hamilton de pé, à esquina da praça de uma pequena cidade do interior. Ouve o grito gutural. Abre de espanto o livro, submisso a mais pura ordem alfabética, busca pela palavra. S. f. 1. Ato de fechar; cerramento, fechamento. 2. Estado daquilo que se acha fechado. 3. Obliteração; apagamento, fechamento. 4. Astr. Desaparecimento momentâneo de um astro. Apenas mais uma peça inconsistente para o quebra-cabeça de seus miolos. Até que Hamilton ouve novamente o grito – Ô cuzão!

O gato branco salta silencioso sobre a cadeira.

Observa profundamente os meus olhos

com aqueles OlhOs seus:

um verde e outro azul.

Depois ele deixa-se ir.

Lento,

sem medo,

como se nunca estivesse ali.

A cadeira ainda guarda o calor de seu corpo felídeo.

Sua arte do desvanecer.

A liberdade dele me diz muito:

da preguiça,

da coisa toda de não fazer,

do lamber-se cuidadoso e asseado.

Alvas felpas,

garras retráteis

e a cauda sinuosa.

Nada falam do que não foi.

Não se ocupam em espreitar o futuro

ou arrepender-se do que passou.

Fluem íntegras através do agora.

Vazam líquidas num caminhar sólido,

firme,

de um passo quieto e magro

de quem absorve a maciez do chão

e lhe devolve o salto em dobro.

Vestir para a ceia

maio 3, 2010

Ei, você!

Bota essa sua camisa preta de manga longa; abotoa-a bem ao colarinho e nos punhos. Veste aquela cueca samba canção, de seda dourada – te disseram atrair a riqueza. As meias pretas. Aquele seu terno preferido, também preto, risca de giz, de caimento perfeito. Sapatos novos, brilhantes, prontos para trilhar novos rumos. Na gravata o nó adequado à ocasião festiva. Toma esse teu livro preto; leva ele em sua mão canhota. Barba feita, os cabelos bem aparados e devidamente penteados. Apenas um toque de maquilagem para parecer mais saudável, jovial. Aquele seu sorriso austero no rosto. Nobre. Dois pequenos chumaços de algodão cuidadosamente instalados internamente às narinas. Deitado em sua urna – madeira de lei.

Você sabia de antemão haver data e hora marcadas para este encontro. Pagou um bom jazigo, na ala dos abastados. Sua lápide de pedra grafada. Frases de efeito dos poetas afamados. Mas enquanto desces – len-ta-men-te – sente o arrepio na espinha. Sabe bem que a ceia está prestes a ser servida. É você o prato da vez.

Alguém te disse que quando a gente morre passa um filme da vida da gente. 3-D? Você tratou de recheá-la dos bons momentos, uma vida agradável, sem sobressaltos, assim como te mostraram nessas novelas da tv, onde ao final tudo dá certo. Mas qual o que: tudo aquilo que passa em sua mente são as suas piores escolhas. Toda vez que você topou com a encruzilhada; seguiu pela trilha mais fácil. Você se recorda, então, de quantas vezes foi covarde, vaidoso, omisso; preferiu se calar, vilipendiar e explorar. Agora sua urna de madeira de lei não serve de escudo. É apenas mais um flagrante delito de atentado à natureza centenária da vida.

Faz frio, é úmido e escuro sete palmos abaixo da terra. Para cada vil criatura – como você – existem milhares deles – os vermes. Eles te penetram lentamente através dos seus orifícios. Pelas cavidades nasais, pela sua boca, pelos ouvidos, entram pelo seu ânus. Mastigam lentamente os seus globos oculares (iguaria), a carne do seu cérebro, todos os seus miolos. A dor é lancinante – e você continua sentindo. É feito dessas suas fraquezas o tempero acerbo que os vermes mais apreciam. É porque você não esgotou as suas potencialidades que eles se regozijam. Eles vivem disso: da vida que você se furtou.

Em meio aos delírios, chega a imaginar que não morreu; que você ainda está vivo. Mas que nada. Agora é você consigo mesmo. E sua consciência é implacável.

Então você pensa: – Ah, se o arrependimento matasse! Mas quem te mata é a vida.

Ei, você!