A derrota remete ao novo

abril 13, 2011

 

Esta paga

a parte que me cabe

nessa estranha mesa de bar

um copo quebrado

é o meu corpo que parte

miríade de cacos de vidro

nada resta do líquido

vazado através dos dedos

às palmas

ele parte

escorre fluido

as mãos não bastam

é conseqüência do ato

os rudes são reminiscências dos sonhos

rebaixamo-nos ante as leis dos homens

mais parecem sem sentido

é chegada a hora

renovarmo-nos o íntimo

tudo o que foi escrito

está vencido:

a rota remete ao novo

Face terrível de ver, mas mente benigna,

E com uma longa barba sobre o peito robusto!

Desprezou os seus entes queridos, para nos amar,

Considerando Ravena sua própria pátria.

– Epitáfio de Droctulft, guerreiro lombardo, citado na “história do guerreiro e da cativa”

 

Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo nasceu em Buenos Aires, Argentina, ao vigésimo quarto dia do mês de Agosto de 1899. 

“Minhas provações começaram, como mencionei, num jardim de Tebas. A noite toda não dormi, pois algo estava lutando em meu coração. Levantei-me pouco antes do amanhecer; meus escravos dormiam, a lua tinha a mesma cor da infinita areia. Um cavaleiro exausto e ensangüentado vinha do oriente. A alguns passos de mim, rolou do cavalo. Com uma tênue voz insaciável perguntou em latim o nome do rio que banhava os muros da cidade. Respondi-lhe que era o Egito, alimentado pelas chuvas. ‘É outro o rio que procuro’, replicou tristemente, ‘o rio secreto que purifica os homens da morte’”. 

– Excerto do conto “O imortal”

 

Em 1914 sua família se mudou para Suíça, onde ele estudou e empreendeu viagens para a Espanha. Em seu retorno à Argentina em 1921, Jorge Francisco começou a publicar seus poemas e ensaios em revistas literárias surrealistas. Também trabalhou como bibliotecário e professor público universitário.

“Não vou falar das fadigas do meu trabalho. Mais de uma vez gritei para a abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me ocupava me inquietou menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um deus. Que tipo de sentença (perguntei a mim mesmo) construirá uma mente absoluta? Considerei que nem nas linguagens humanas existe proposição que não implique o universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e as tartarugas que devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz a terra. Refleti que na linguagem de um deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato”.

 – Trecho de “A escrita do deus”

 

Sua obra abrange o caos que governa o mundo e o caráter de irrealidade em toda a literatura. Seus livros mais famosos, “Ficciones” (1944) e “O Aleph” (1949), são coletâneas de histórias curtas interligadas por temas comuns: sonhos, labirintos, bibliotecas, escritores fictícios e livros fictícios, religião, Deus.

“Relatar com alguma fidelidade os fatos daquela tarde seria difícil e talvez improcedente. Um dos atributos do inferno é a irrealidade, um atributo que parece mitigar seus terrores e talvez os agrave.” 

– Passagem do conto “Emma Zuns”

 

Em 1955 foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional da República Argentina e professor de literatura na Universidade de Buenos Aires. Em 1961, se destacou no cenário internacional quando recebeu o primeiro prêmio internacional de editores – o Prêmio Formentor.

“Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem deve acatar o que traz dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme o estorvavam. Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de cão gregário; compreendeu que o outro era ele”.

– Excerto da “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-74)”

 

Seus trabalhos contribuíram significativamente para o gênero da literatura fantástica. Estudiosos notaram que a progressiva cegueira de Jorge Francisco ajudou-o a criar novos símbolos literários através da imaginação, já que os poetas, como os cegos, podem ver no escuro. Os poemas de seu último período dialogam com vultos culturais como Spinoza, Luís de Camões e Virgílio.

“Agora as coisas mudaram; nesta noite que precede a minha execução, posso falar sem medo. Não pretendo ser perdoado, porque não sinto culpa, mas quero ser compreendido”. “Eu sei que casos como o meu, excepcionais e assombrosos agora, serão muito em breve triviais. Amanhã morrerei, mas sou símbolo das gerações futuras”.

– Trechos do conto “Deutsches requiem”

 

Seu trabalho foi traduzido e publicado extensivamente nos Estados Unidos e na Europa. Jorge Francisco era fluente em várias línguas. Faleceu em Genebra, Suíça, ao décimo quarto dia do mês de Junho de 1986.

“Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que em nenhum instante se rebaixou ao sentimentalismo ou ao medo, notei que os porta-cartazes de ferro da praça Constituición tinham renovado não sei que anúncio de cigarros; o fato me tocou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que aquela mudança era a primeira de uma série infinita. Poderá mudar o universo, mas não eu, pensei com melancólica vaidade…” “…para terminar o poema, a casa era indispensável, pois num canto do porão havia um Aleph. Esclareceu que um Aleph é um dos pontos do espaço que contém todos os outros pontos”. “Existe esse Aleph no fundo de uma pedra? Eu o vi quando vi todas as coisas e o esqueci? Nossa mente é porosa ao esquecimento; eu estou mesmo falseando e perdendo, sob trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz”.

– Passagens do conto “O Aleph”

 

Entretanto, para entender Jorge Francisco (escritor e ser humano), penetrar seu rico e singular universo, nada melhor que permitir-se à fantástica experiência da leitura de suas obras.

 

Referências:

[1] “O Aleph”, Jorge Luis Borges, (1949); tradução: Davi Arrigucci Jr., Companhia das Letras, São Paulo, (2008).

[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Luis_Borges, acesso ao sítio em 05/04/2011.

 

 

O abandono

abril 2, 2011

Eu sou João. Mas se olho no espelho, a imagem que vejo é aquela do demônio. A besta fera de sete cabeças, as bocas cheias de grandes dentes pontiagudos. A dor é imensa. A baba escorre pegadiça de minhas bocas. A dor é intensa. Os globos vermelhos saltam de minhas órbitas. A dor é insana. Sou meu próprio labirinto aqui na ilha de Patmos. Para descer de onde estou – para dentro de mim – percorro uma miríade de escadas através de nuvens, repleta de bifurcações. Sigo passagens por entre estranhas formações de vapor. São as minhas próprias entranhas. Essa é a única mística na qual ainda acredito. No passado dessas paragens – que agora nada mais dizem – um estrangulamento do tempo colapsou o eterno porvir, naquele que é. Observo a noite. Observo as estrelas. São tão belas! Mas estão ausentes. Por que nos abandonaste? São inextricáveis possibilidades de seres. Desdobramentos da existência. E não adianta lutar: habita-me o devaneio. Um remoinho sobre minha cabeça. (Não eram sete?)