Os ipês

maio 26, 2022

O amigo poeta me disse que ambas as coisas são importantes,
mas quando pudermos ver com os olhos do coração,
além do sentido da visão,
tudo o mais fará mais sentido.

Eu pedi que ele me explicasse melhor.
Acima da terra há o tronco, os galhos e as folhas das árvores – ele me disse.
É para isso que olhamos.
Mas debaixo da terra existem raízes profundas e emaranhadas que às sustentam.
Então, quando uma árvore floresce, é porque ela sorri;
transbordando em amor e felicidade.
E isso nós percebemos;
mas o que realmente nos toca, nos sensibiliza,
é o que vemos com os olhos do coração:
a harmonia, o equilíbrio e a beleza da vida
(estas são qualidades imensuráveis aos sentidos).

Em dúvida, recorri ao amigo botânico.
Este me disse que não há lógica em nada disso.
Enfim, não passava de uma metáfora infame.

Passados alguns dias,
retomei o diálogo com o amigo poeta,
e levei a ele este segundo ponto de vista.
O poeta prontamente me respondeu:
Já percebeu que os ipês florescem juntos?
É porque estão felizes por se abraçarem.
Ainda não totalmente convencido,
perguntei sobre quando as árvores perdem todas as suas folhas no inverno.

Quando você puder ver com os olhos do coração,
entenderá que os ipês estão sempre abraçados.
Ora compartilham a felicidade,
ora são empáticos na dor.
São muitos e, ao mesmo tempo, são apenas um.
O amor mora nestas raízes que se abraçam.
As estações do ano são cíclicas,
mas os laços verdadeiros
são para sempre.

A luz de Rubem Alves

maio 17, 2022

Esse breve texto é uma espécie de colcha de retalhos: trata-se de uma cuidadosa seleção de trechos colhidos do livro de crônicas “Sobre o tempo e a eternidade”, Rubem Alves – 16a ed. – Campinas, SP: Papirus 2012 (ISBN 978-85-308-0387-2).

Espero que o leitor perceba essa linha tênue que costura o hoje, o ontem e o amanhã no sempre. A eternidade transborda em crônicas de grande sensibilidade a partir das quais eu tento aqui o exercício simples de compor uma veste que ilumine as sombras. Se há, de fato, essa túnica; há também propósito e beleza: esse eixo que sustenta a vida.

Sem mais delongas, vamos aos trechos de Rubem Alves. Use desse manto sem moderação!

Não é por acaso, portanto, que o peixe seja, a um tempo, símbolo poético e símbolo profético: é que ele nada nas funduras do tempo, onde a eternidade gera os seus milagres.

Veja só o que aconteceu! Sua luz encheu a sala de alegria. Todos os nossos rostos sorrindo para você. E, por causa dessa alegria, cada um deles vai, também, acender a sua vela.

Não há nada que possa ser feito. Felizmente chegaram, de espaços siderais, anjos de todos os tipos. Sugiro que os pais encomendem anjos especializados na guarda de adolescentes para tomar conta dos seus filhos. E que, para seu benefício próprio, invoquem os anjos protetores do sono e dos sonhos. Se não há nada a ser feito, pelo menos que o sono seja tranquilo e que os sonhos sejam suaves.

E é isso que eu gostaria de dizer hoje aos adolescentes solitários, sem turma, sem festas, sem estórias de beijos e amores para contar, as noites de sábado em casa, o telefone em silêncio: vocês são meus companheiros. Eu andei pelos caminhos que vocês andam.

Mas sou agradecido à vida por ter sido assim. Porque foi em meio ao sofrimento dessa terrível solidão que tratei de produzir minhas pérolas. “Ostra feliz não faz pérola”. Comecei então a andar sozinho pelos caminhos onde os outros adolescentes não iam: a música, a mística, a arte, a literatura, a poesia, a filosofia. Todos eles mundos solitários, onde só se entra sozinho. Andando por esses caminhos descobri aqueles que se pareciam comigo. Zaratustra, por exemplo, que se via como uma árvore crecendo à beira do precipício, seus longos galhos se estendendo sobre o abismo. Eu quis ser assim também.

As maritacas gritam, e todos as ouvem, mesmo sem querer. Mas o canto do sabiá solitário, ao final da tarde, em algum lugar da floresta, faz todo mundo se calar para poder ouvir… Isso eu lhes digo, solitários: há muita beleza escondida na sua tristeza. Não tenham dó de si mesmos. Tratem de usar o martelo e o cinzel…

No outro extremo está a sexualidade inspirada na culinária de Babette, tudo é delicado, sutil e embriagante, até mesmo as toalhas e a posição das velas. Tudo é pensado como uma obra de arte. Mas, como se sabe, isso é coisa de dias especiais, dias de festa…

A aparência bruta, os músculos moldados pelos halteres, as estórias de proezas sexuais, a produção visual de acordo com os padrões masculinos – todos esses são artifícios de um ser amedrontado diante do mistério fascinante da mulher. Tão fraca, tão frágil – e, no entanto, é diante dela que eu vou me revelar. Será ela que me revelará se eu sou comida capaz de matar a sua fome. Os que não sentem ansiedade são aqueles que não entendem, semelhantes aos cachorros: ainda não ouviram a notícia. Dentro em breve a sua carne os surpreenderá com o recado.

Já disse que acho mórbido o costume de apagar velas pelo aniversário. Uma vela nunca deve ser apagada: há sempre o perigo que os deuses não entendam o que estamos pedindo ao assoprar a chama, símbolo da vida. Para evitar mal-entendidos, prefiro fazer o contrário: acender a vela. Os deuses entenderão o que estou pedindo. E é só isso que faço nesse seu aniversário, meu filho: acendo uma vela…

Você procura as Águas da Vida. Queria ser capaz de amar, para poder voltar ao seu mundo. Amar… é difícil dizê-lo. Mas as Águas da Vida vão perguntar: Quem? Não se ama em geral. Se você não for capaz de responder, não poderá beber. Por isso, só um sonho esquecido que você reencontre aqui poderá ajudá-lo.

Pois foi assim, meu filho, ao ver o tempo passando por você, que invoquei os deuses e acendi a minha vela para procurar, nas cavernas da memória, as imagens de saudade que eu gostaria que se repetissem sempre.

Você nunca sentiu isso? Uma saudade inexplicável de algo que não se sabe o que é? A saudade aparece, então, como tristeza no seu estado puro, sem objeto. Quando você sentir isso, não se aflija. É que os seus olhos estão andando pelos bosques misteriosos onde nasce a poesia. São os bosques da saudade. Todos os poetas são como Miguilim: já nascem velhos.

Inutilidade. A Sonata de Domenico Scarlatti que ouço tocada ao cravo, enquanto escrevo essa crônica. O pequeno poema de Emily Dickinson que repito de cor. O cálice de licor que bebo. As ninfeias de Monet sobre que se demoram meus olhos. O bonsai de que cuido. A pipa na mão do menino. A boneca no colo da menina. A mão querida que me toca. Não servem para nada. Não são ferramentas úteis para realizar tarefas. Nem são caminhos ou pontes. Quem tem essas coisas não precisa de ferramentas, pois com elas cessa o desejo de fazer. Quem tem essas coisas não precisa nem de pontes nem de caminhos, porque com elas cessa o desejo de ir. Não é preciso ir, porque já se chegou lá, no lugar da alegria. O prazer e a alegria moram na inutilidade.

Pois a eles é dada a graça, se ficarem sábios, de gozar a liberdade da compulsão prática – a doença terrível e mortal que ataca jovens e adultos. Todos eles querem ser úteis. Todos querem ser ferramentas. Todos querem morar ao lado de facas, martelos, palitos, vassouras, caminhos e pontes.

Mas há um outro jeito: o dos poetas. Os poetas conheceram o inconsciente através da Beleza. Para eles, no centro do inconsciente está um jardim. Alguém o fechou, é bem verdade. A chave se perdeu. Mas ele pode ser aberto. E é isso que Bachelard proclama, inspirado nos desenhos de Chagall: “O universo – os desenhos de Chagall o provam – tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o paraíso”.

Quem confiar nas fantasias da pequena luz descobrirá esta verdade psicológica: o inconsciente tranquilo, sem pesadelos, em equilíbrio com a sua fantasia, é exatamente o claro-escuro do psiquismo, ou melhor ainda, o psiquismo do claro-escuro. Imagens da pequena luz nos ensinam a gostar desse claro-escuro da visão íntima – o inconsciente é a tela de um mestre flamengo.

Então, não brigue com a sua doença. Ela veio para ficar. Trate de aprender o que ela quer lhe ensinar. Ela quer que você fique sábio. Ela quer ressuscitar os seus sentidos adormecidos. Ela quer dar a você a sensibilidade dos artistas. Os artistas todos, sem exceção, são doentes… É preciso que você se transforme em artista. Você ficará mais bonito. Ficando mais bonito, será mais amado. E, sendo mais amado, ficará mais feliz…

Comecei o meu pensamento trazendo a lista de pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meirelles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meirelles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakovski suicidou-se. Essas eram as pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.

Presentes não são pacotes de alegria, como os ingênuos pensam. Presentes são entidades mágicas. Quem dá um presente está fazendo “um trabalho”. Presentes são bruxedos que atiçam as potências adormecidas da alma humana.

Sentimento igual à personagem de Goethe que, escrevendo para a amada, dizia: Não, nada tenho para lhe dizer. Escrevo-lhe porque sei que suas mãos irão tocar esta folha de papel… É isso: alegria mística de partilhar um mesmo espaço, a despeito da distância do tempo.

É de madrugada, naquele intervalo confuso entre o sono e o estar acordado, que os deuses me fazem as suas revelações. Acontece, então, que as coisas mais banais aparecem à minha frente pelo avesso, o que muito me surpreende porque, pelo avesso, as coisas são o oposto do que parecem ser pelo direito.

Você não entende por que a gente chora diante da beleza? A resposta é simples. Ao contemplar a beleza, a alma faz uma súplica de eternidade. Tudo o que a gente ama a gente deseja que permaneça para sempre. Mas tudo que a gente ama existe sob a marca do tempo. Tempus fugit. Tudo é efêmero. Efêmero é o pôr do sol, efêmera é a canção, efêmero é o abraço, efêmera é a casa construída para o resto da vida.

…e repentinamente eu acordei, fora de hora, sem razão alguma. Olhei para o despertador: quatro horas da madrugada. O corpo dizia que eu deveria dormir um pouco mais, para não ficar sonolento durante o dia. Mas ideias na minha cabeça exigiam que eu brincasse com elas.

Uma mulher, mergulhada no escuro do cômodo, segura uma vela com sua mão esquerda. Seu rosto brilha, iluminado pela luz quente da chama. Sua mão direita, que a luz da vela tornou quase transparente, protege a chama que treme e inclina-se, soprada por algum vento. Estaria ela abrindo a porta para alguém, àquela hora da noite? Isto explicaria tanto a inclinação da chama ao vento quanto o seu sorriso. Um sorriso, a seu modo, é também uma chama que treme ao sopro de algum vento.

Uma criança dormindo pede que sejamos apenas olhos. Qualquer passo, qualquer palavra, qualquer toque poderá acordá-la. Mas o sorriso dos olhos é silencioso, deixa a cena intocada. Sim, as mãos tocam o rosto… Mas como são diferentes as mãos ternas das mãos que desejam a posse. A ternura não deseja nada. Ela só quer contemplar a cena. O beijo terno apenas encosta os lábios… As mãos ternas são extensões do olhar. Tocam para se certificar que os olhos não mentem.

Assim são meus mapas. Olho para vastos espaços. Identifico rios, montanhas, mares, cidades. Não me dizem coisa alguma. Não me produzem nenhum riso. Mas há uns poucos lugares que brilham como estrelas. São lugares onde moram pessoas que eu amo. Ou lugares onde eu fui feliz, vi a beleza, experimentei o amor. Cada um tem um mapa que é só seu.

Na verdade, eu não sei direito se você a fez. A música é coisa misteriosa. Não acredito que nós, mortais, tenhamos o poder de fazê-la. A música é eterna, existiu sempre, é anterior à criação do Universo. O autor sagrado que escreveu “No princípio era o verbo”, acho que se equivocou. O que queria dizer era “No princípio era a música”. É a isso que dou o nome de Deus.

Resta essa capacidade de ternura, essa intimidade perfeita com o silêncio. Resta essa vontade de chorar diante da beleza, essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido. Resta essa faculdade incoercível de sonhar e essa pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas tomam por esperança.

Há também, na vida, um momento que uma voz nos diz que chegou a hora de morrer. Não, por favor, não me entenda mal. Não estou me referindo à morte física. Refiro-me à voz que diz que chegou o momento de uma grande metamorfose: é preciso abandonar aquilo que sempre fomos para nos tornarmos uma outra coisa. Hora de ficar jovem de novo.

O fim de nossas explorações adultas será finalmente chegar ao lugar de onde partimos, a criança, para então nos conhecermos pela primeira vez.

Vaseduva, o barqueiro, fora discípulo do rio por toda a vida. E aprendera tanto que até podia dar lições a Sidarta: “O rio me ensinou a escutar”, disse Vaseduva a Sidarta. O rio sabe todas as coisas. Dele pode-se aprender todas as coisas. As vozes de todas as criaturas vivas podem ser ouvidas na sua voz. E assim eles se assentavam juntos, no tronco de árvores, ao cair da noite. Ouviam a água em silêncio, a água que para eles não era só água, mas a voz da vida, a voz do Ser, da Transformação eterna.

Para Dezê, que compõe comigo laços doces e amorosos. Uma árvore frondosa, de raízes profundas. Uma árvore com flores perfumadas. A árvore cujos frutos nutre-nos vida afora. Eu vejo a luz nos seus olhos e, quando eu os vejo, eu sou feliz.