1) Dia desses se flagrou fazendo barras e fumando ao mesmo tempo, tragando o Camel na descida e soltando a fumaça na subida, enquanto sua mente fabricava cenas muito realistas e serenas envolvendo a sua morte por doença, acidente ou suicídio.

2) Sua presença deixava marcas de outra espécie, o ranço de tabaco, os temperos fortes e aromas artificiais, detritos corporais, a eletricidade de sua constante inquietude ou de sua compulsão por alinhamentos, que o levava a ajustar os panos no fogão e no banheiro numa eterna buscas por paralelas, ângulos retos e superfícies niveladas. Eles adoram o lugar onde vivem juntos agora, reconhecem ali seus cheiros, suas constelações de ícones culturais, a aura vestigial de fodas e brigas.

3) Pelo menos na cabeça dele, afloravam de vez em quando cenários especulativos de caos social, desastre climático ou rompimento definitivo com o modo de vida urbano, forçando-os a uma reclusão heróica e hedonista no aconchego do lar ou ao refúgio idílico em rincões distantes. Só anseia por esse tipo de coisa quem ama para além de qualquer dúvida, ele gostava de pensar. Amar além de qualquer dúvida era a boia que lhe permitia respirar um pouco nos piores momentos e ele nem gostava de pensar no que poderia ocorrer se a boia afundasse.

4) A imagem no banheiro não saia da sua cabeça e ele sente que testemunhou um mistério arrebatador, o flagrante de um corpo e mente completamente alinhados à experiência de estar viva, como uma dessas flores raras que desabrocham poucas horas por ano no coração de selvas remotas. O que ela está vivendo, Lucas conclui, ele não pode viver, e o que ela está vivendo tem a ver com com coisas que ela viveu muito antes de ele entrar na vida dela, embora nesse instante a vida de um seja a vida do outro numa sobreposição quase completa. Esse quase, porém, é imenso, é uma distância intransponível de um fio de cabelo, o universo compactado numa cabeça de alfinete, é tanta coisa que não lhe diz respeito nem nunca dirá.

5) Manuela gosta de vê-lo assim, solto, provocador, inadequado sem decair para a cretinice, pois isso lhe diz que, mesmo depois de anos juntos e dessa provação dos últimos dias, eles continuam tolerantes com o jeito de ser um do outro e ainda mantêm suas qualidades pessoais intactas, prontas a se manifestar de novo nas condições certas. Não quer que o filho os desfigure espiritualmente, que defeitos novos substituam os antigos, aos quais o convívio já conferiu encanto e ternura.

6) Uma enfermeira chama o seu nome. Manuela está bem, mas com apenas três centímetros de dilatação. Ele agradece e desmonta na cadeira de plástico. A gestação foi impecável, os exames todos exemplares, é como se Manuela estivesse sendo punida agora para alcançar a média de sofrimento reservada a todos que ousam conspurcar com vida a candura da matéria inerte que estava quieta no seu canto sem incomodar ninguém.

7) Quanto a ser um bom pai, prossegue a freira, ele vai descobrir que não é difícil. É bem simples. Tem de ensinar a criança a amar a vida. Isso é tudo. Amar a vida e todas as criaturas que existem, do homem até as coisas mais pequenas e frágeis.

8) Amar todas as criaturas, sim, sobretudo as mais frágeis. É algo que terá prazer de ensinar a seu filho. Ele mesmo se tornará alguém melhor no esforço dedicado de fazê-lo. Por algum motivo pensa nas avencas de Manuela, em suas folhinhas miúdas, macias e finas. A freira diz que naquele mesmo andar, seguindo um pouco pelo corredor e virando à esquerda, há uma capelinha onde se podem deixar bilhetes para o padre orar por alguém. Algumas pessoas gostam de ir lá e deixar o bilhete, ela acrescenta, mesmo as que não têm religião. Não faz mal nenhum. Deus não se importa se ele acredita.

9) Daquela época em diante, senti que tinha alcançado o que procurava. A fazenda não era a expressão de um espírito empreendedor nem de um desejo altruísta de ajudar meus semelhantes a continuarem tendo alimento numa terra que eles mesmos tinham devastado. O empreendendorismo ocupava as camadas mais baixas da minha escala de valores e minha tendência misantrópica crescia desde a juventude com a paciência e a solidez de uma estalactite. O que eu buscava e tinha obtido com a fazenda era a dedicação a um sistema que eu pudesse construir do zero e que me absorvesse por completo.

10) O próprio convite para viajar me pegou um tanto de surpresa, pois naquele ano eu já não falava muito com a minha mãe. As suas posições políticas, que consistiam numa mistura de patriotismo cínico, anarcocapitalismo e um darwinismo socioeconômico convenientemente talhado para justificar a existência de pessoas como ela, me amargavam e forçavam a revisar o respeito e a admiração que tinha dedicado no passado a tantos aspectos de sua pessoa, afinal ela era minha mãe, uma mãe solteira que tinha cuidado de mim com carinho por anos e anos. Além disso, ela já havia se transformado num ser intangível, uma mulher em transição para o pós-humano. Sua morada principal era um apartamento em Nova York, mas ela mantinha tanbém a nossa antiga casa em São Paulo, e uma mansão futrista nos arredores de Tallinn, e uma espécie de mistura de bunker com torre de observação na ilha Waiheke, na Nova Zelândia, a mesma para onde, décadas antes, haviam escapado vários de seus amigos bilionários quando irrompeu a primeira pandemia.

11) Bento tinha quarenta e nove anos quando Otto nasceu. Seu único filho chegou algo tarde em sua vida, fruto de seu envolvimento com uma garota bem mais jovem, aluna de sua turma de história da arte na universidade pública, e o mundo que os aguardava não era o mesmo mundo em que ele havia nutrido, por décadas, o sonho da paternidade. Tinha criado o menino num planeta assolado por doenças novas, violências antigas e tecnologias traiçoeiras. Tecnologias que revolucionavam nossos hábitos numa velocidade que o corpo não podia acompanhar, que para serem produzidas exigiam uma enromidade insustentável de matérias-primas e trabalho invisível, que acabavam entrando em colapso antes que nossa fisiologia e nossa psique fossem capazes de arcar com as rupturas resultantes, nos deixando com um leque de novos problemas para cada solução introduzida.

12) “Já se discutiu muito se essas relações afetivas com os primeiros eletrônicos interativos eram alienantes ou artificiais”, prosseguiu o Terapeuta. “Uma substituição mais pobre para relações verdadeiras entre humanos. Essa discussão é em grande medida ultrapassada. Como eu ia dizendo, tendemos a acreditar que estamos cercados por outras mentes. O animismo é uma das modalidades de cognição mais antigas da nossa espécie. Antes de serem vistos como reservas de alimentos, os animais eram manifestações de espíritos que explicavam a natureza, eram mensageiros do além. Para arborígenes australianos, algumas rochas são divindades. Essa empatia não necessita de evidências. A metafísica subjacente é discutível, mas o poder da crença não é. É uma parte muito significativa da nossa relação com o mundo, espontânea e intensa nas crianças.”

13) “Você tem planos para o futuro? Não me fale do futuro do planeta. Quero saber do seu.”

14) “Tenho planos de curto prazo”, respondeu Cristal. “Futuro para mim é agora. Me informar em fontes seguras ou diretas. Ajudar pessoas a denuciar injustiças. Viver com algum prazer sempre que possível.”

15) “Ouvi dizer que essas reuniões secretas em Hokkaido eram para colocar dinheiro em mais um projeto de burrice artificial que vai emitir quantidades alucinantes de carbono, usar trabalho escravo para extrair metais raros, substituir milhões de empregos, coisa e tal.” Os projetos da minha mãe já eram assunto indigesto para mim naquela época. Eu sabia o quanto eles tinham de messiânico e irresponsável, a que casta seleta serviam enquanto se apregoavam como solução milagrosa e democrática para os impasses da civilização.

16) A jovem funcionária olhou para mim e depois grudou o rosto em sua tela. “Uma pessoa é um corpo?”, me perguntou Maria, capturando de novo minha atenção. “Uma pessoa é o conjunto de seus estados mentais? Seria ela a soma das duas coisas?” Ela fez uma pausa antes de responder à própria pergunta retórica. “Uma pessoa não é uma coisa nem outra, tampouco a soma delas. Uma pessoa é a expressão de uma entidade matemática distinta entranhada no próprio tecido do universo. A questão de sua corporificação é irrelevante. Foi isso o que decobrimos e cultivamos aqui na Heracle. É nisso que acreditamos. Se preferir uma metáfora antiquada, pode pensar que uma pessoa é feita de luz. Dentro daquela sala, você estará em contato com a entidade matemática da sua mãe. Ela se valerá de simulações adequadas à sua percepção para se comunicar. Isso é tudo.”

17) Precisamos resistir a inventar o passado, ela ensina, esquecer os relatos e desfazer os registros. Não há necessidade do passado, pois o presente guarda todos os indícios que precisamos para manter o Organismo vivo. Você vê uma fileira de pedras e sabe que em outro tempo, não importa se ontem ou há mil anos, alguém traçou bem ali uma fronteira protegendo um olho-d’água ou demarcando um perigo na topografia. Vê o capim esmagado e sabe que ali transitam manadas de javalis. Vê o sofrimento de um humano e sabe que precisa tolerar sua ira e violência, pois ele age assim no momento por causa do sofrimento que ele mesmo não percebe. O dorso da mão diz a idade da pessoa. As torres de transmissão e os detritos de metal e plástico dos telefones e televisores mostram que essas tecnologias eram fadadas a ter breve duração ou apenas inúteis. Além disso o passado reforça a identidade, e a identidade é o veneno das comunidades. O pertencimento é uma ilusão e uma deformidade do medo. A Velha aboliu a lembrança e entronou a experiência. Ela diz que o humano não deve ser nada além do que vai se tornar no instante seguinte.

18) As abelhas poderiam simplesmente nos matar quando precisam de um cadáver, lembra a Velha, mexendo numa panela de inhame desmanchando com a carne de cordeiro, suco de limão e folhas de radite, enquanto Chama lava cumbucas de madeira e antigos pratos de porcelana com bucha e sabão. Se não nos matam é porque alguma coisa as beneficia num Organismo sem medo, e talvez essa coisa seja apenas o nosso comportamento. Chama pergunta se isso significa que as abelhas querem o nosso bem e a Velha apenas ergue as sobrancelhas, como se dizer as coisas com tal clareza nos desviasse necessariamente da verdade.

19) Um fugitivo de onde? E que tratamento merece um fugitivo? Com frequência Chama percebe que ignora coisas óbvias que mesmo as crianças compreendem e procura afastar os sentimentos de inferioridade que surgem dessa constatação desde que a Velha lhe disse que isso ocorre porque ela direciona os seus sentidos para coisas diferentes, tem um jeito de prestar atenção nas coisas que não vai ao encontro do jeito dos humanos mais semelhantes entre si, e que haverá momentos em que essas peculiaridades lhe trarão orgulho e satisfação. O tratamento dado ao homem caído lhe deixa um gosto amargo na boca. Existe uma violência de sobreviver e existe uma violência que não tem a ver com sobreviver, ensina a Velha. Essa que não tem a ver com sobreviver é uma desforra contra um sentimento de injustiça baseado no engano de que algo nos é devido somente por existirmos. A violência acontece porque achamos que a dívida não será paga, ou que está sendo paga aos outros antes ou em detrimento da nossa própria dívida, ou que caberia às vítimas da nossa violência, de alguma maneira, realizar o pagamento em nome do universo calado e invisível. Mas não há dívida, diz a Velha, somente dádiva.

20) A Velha pergunta a Alfredo o que exatamente a chegada do astronauta significa, pois esse significado, que parece tão evidente ao Alfredo, lhe escapa. Depois diz que nada do que consta nos livros e jornais velhos poderá nos dizer o que fazer com esse humano, mas o que faremos com esse humano dirá o que seremos desse momento em diante. A Velha olha em torno e roga que as ações do Organismo não sejam pautadas pelo passado, mas sim pela observação atenta e generosa do presente.

21) O olhar de confusão do homem desperta nela suspeitas disformes mas suficientes para começar a amolecer determinadas certezas. Entre outras coisas, uma membrana tão desafeta a trocas começa a lhe parecer suspeita. Membranas, a Velha diz, organizam um arranjo de alianças no tempo e no espaço, mas sua porosidade não elimina as trocas vitais com o lado de fora. Para o isolamento temos abismos e cercas. Pode ser que a membrana do Organismo tenha endurecido demais e se tornado uma casca, Chama pensa. Ela tem um vislumbre fugidio e delirante da visão que lá de cima o astronauta tinha da terra, dos seus organismos dentro de organismos em órbita, e sente uma tontura tão forte que precisa se agachar também e apoiar as mãos no chão. O astronauta aponta uma última vez para o buraco que cavou e a encara com ternura e súplica antes de lhe dar as costas e continuar com suas errâncias.

22) Foi ensinada a não dar valor demasiado ao futuro, mas não pode evitar sentir que agora o futuro se abre à sua frente de uma maneira como nunca se abriu. Chama deita de lado no colchonete de palha, acomoda as mãos entre as pernas e se ajeita com cuidado, procurando não perturbar as abelhas cansadas que dormem nos seus cabelos.

Sobre o livro: “O deus das avencas: Três novelas”, Daniel Galera, 1a edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2021.