Rafael pediu um copo com água. Era preciso botar um ponto final naquilo.

 

* * *

 

Sua lembrança mais remota remonta tenra idade, quando seu lobo frontal iniciou certa atividade num dado padrão vibratório de alta freqüência. Rafael tinha a sensação que essa parte de seu cérebro transcendia os limites da fronte. Com o passar do tempo, o pulsar do lobo entrou em regime e era para ele um análogo daquilo que são os bigodes para os gatos – apesar de não ter a vivência dos felinos, assim é que ele mais gostava de se referir àquela experiência ulterior. Espécie de esfera energética que irradiava de sua mente. Aguçava-lhe os sentidos. Dependendo do momento, a intensidade podia ser amplificada ou diminuída. Rafael associava o aumento da intensidade aos estados conscientes de grande concentração para a realização de atividades intelectuais, e mesmo outros estados alterados da mente, como aqueles relacionados à religiosidade ou aos estágios intermediários entre a vigília e o sono. Nesses instantes era como se seu corpo aumentasse de tamanho – sua cabeça gorda por vezes parecia ocupar o volume de todo o quarto. Se estivesse na penumbra, podia presenciar até a emissão de raios de baixa intensidade ou fagulhas eletrostáticas; eventualmente capazes de alumiar os filamentos incandescentes internos ao bulbo de uma lâmpada. Isso era o máximo que ele conseguia em termos de atividade psicocinética; e mesmo assim, dificilmente conseguia o efeito enquanto estivesse acompanhado de testemunha. Por isso é que Rafael preferia guardar essas sensações e experiências em seu íntimo, evitando assim se fazer passar por ridículo ou falastrão. Apenas comentava as experiências, em linhas mais gerais, para um ou outro amigo mais chegado, sem entrar muito nos detalhes, e também para uns poucos entes da família. E assim, de forma superficial apenas, é que sou capaz de narrá-las ao prezado leitor.

 

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Conheci Rafael por volta dos doze ou treze anos de idade, pelo fato de iniciarmos o ano letivo na mesma classe do ensino fundamental. Logo nos tornamos amigos. Descobrimos que morávamos no mesmo bairro e, desde então, jogávamos bola juntos, pedalávamos pelas trilhas aos arredores da pequena cidade do interior, e foi juntos que fizemos as nossas primeiras incursões pela noite – doces as descobertas do sexo oposto.

 

Havia uma menina que, aos dezesseis anos de idade, trazia consigo a luz que eclipsava todas as demais: era de uma beleza natural, doçura em sua voz e suave harmonia dos movimentos que fazia dela uma garota ímpar no contexto da comunidade que habitávamos. Seu nome era Silvia e morava no bairro mais abastado da cidade. Tanto eu quanto Rafael sabíamos que Silvia não era garota para gente mais humilde, como nós. Nos contentávamos, ao longe, com o doce emanar de sua graça juvenil, enquanto outros moleques, filhos de pais ricos, é que se atreviam às incursões mais próximas ao círculo das meninas que ela polarizava. Numa dessas noites Rafael disse: – Jorge, vai lá que a Silvia é tua. Confesso que na hora minhas pernas bambearam, como seria possível eu realizar aquela investida, com tantos competidores potencialmente mais fortes? E então, ouvi novamente dele, não um comentário ou sugestão, mas uma verdadeira ordem de comando: – Jorge, vai lá que a Silvia é tua. E esse foi o ponto de partida da minha história com Silvia. Até hoje acho incrível e admirável a sintonia entre nós: fato é que nos casamos, tivemos três filhos (duas meninas e um menino) e um complementa o outro como o ideal de todo casal.

 

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Mas essa história é sobre meu amigo Rafael. Parece que trazemos dentro do peito essa estranha tendência de querer enxergar o mundo sob nossa ótica própria apenas; valorizar mais a nós mesmos e àquilo que nos atormenta; o que se passa com o outro muita vez nos passa desapercebido. Mudemos o foco.

 

Estudei com Rafael até o final do colegial e esses anos da adolescência foram aqueles em que fomos mais próximos. Não que a amizade tenha deteriorado, mas é que com o passar do tempo naturalmente assumimos maiores responsabilidades frente à vida e também a distância impôs certa barreira a nossa convivência freqüente: Rafael foi cursar direito na capital. Lá ele conheceu Ana. Eles também sempre se deram muito bem. Depois de alguns anos se casaram. Eu estava presente àquela celebração efusiva quando a taça de cristal que repousava sobre o altar se desfez numa miríade de pequenos cacos logo que os noivos se beijaram. Lembro que aquilo foi muito comentado à época. Mas se deu num dia quente de verão, quando da chegada de uma frente fria: o fenômeno acabou sendo explicado pela física da contração súbita do material frágil do cálice (apenas).

 

Rafael e Ana não tiveram filhos. Por incapacidade de um ou do outro de conduzir aos seus próprios meios à concepção. Durante os anos que peregrinaram na busca de especialistas em reprodução humana, lembro que os ânimos entre o casal se acirraram. Mas a situação parece ter voltado à normalidade depois que eles optaram pela adoção de uma pequena menina – tão doce que parecia ter sido gerada pelo próprio casal.

 

* * *

 

Rafael também ascendeu na carreira. Começou como auxiliar num escritório de direito das causas cíveis, mas logo ganhou posição de destaque entre os colegas. Ele próprio me confidenciou que sua sensibilidade aguçada à atividade do lobo frontal, de uma maneira um tanto quanto subjetiva, possibilitava com que ele fizesse distinção dos seus clientes entre os que diziam a verdade e aqueles que estavam mentindo: – Numa conversa direta, quando há sintonia das idéias, é como se os campos ulteriores das cabeças desenvolvessem espécie de interferência construtiva. Assim, esses fluxos energéticos se sobrepõem, o que favorece em muito o andamento dos trabalhos e os desenvolvimentos conjuntos. O sucesso nesses casos cíveis dá-se então, de forma fácil, quase natural. – Por outro lado, quando percebo numa conversa preliminar a constrição do lobo, parece haver a interferência destrutiva; e as ondas energéticas se anulam. – Jorge, eu tenho então grande certeza de que o cliente está mentindo e que o caso está fadado ao fracasso. Invento uma desculpa, peço que o cliente procure por outro advogado, e assim vou filtrando, separando o joio do trigo.

 

* * *

 

Conseqüência direta de sua inteligência aguçada, esforço pessoal e intuição é que Rafael, depois de acumulada experiência como militante na advocacia, decidiu abrir o seu próprio escritório. E esse foi o período mais próspero na vida de Rafael, Ana e Carolina – a filha adotiva do casal que, à época, entrava na adolescência. Rafael tinha acumulado exímia reputação como advogado das causas cíveis e optado por trabalhar sozinho, pegando poucos casos que lhe rendessem o sustento da família bem como a necessária paz de espírito (posto que não era sujeito ambicioso, embora tivesse apreço pelo conforto).

 

* * *

 

Foi naquela manhã com o céu limpo de outono que Rafael recebeu a visita de um cliente potencial. O latifundiário de nome Jacinto lhe pareceu boa pessoa, era simples e direto; tinha a fala mansa que transmitia grande segurança. Naquela primeira entrevista Jacinto queixou-se das acusações infundadas que lhe foram impingidas: a anexação indevida de terras às margens de sua propriedade, roubo de gado, exploração da mão-de-obra em regime de semi-escravidão e ameaças de morte aos sertanejos das cercanias – que agora o denunciavam sob amparo do Estado. O semblante de Jacinto se desfez e ele chorou copiosamente; trazia aos olhos a inocência de uma criança. Rafael sensibilizou-se com a causa e prometeu ajuda ao seu mais novo cliente. Com o passar do tempo e o avanço do processo nas diferentes instâncias – sempre com o parecer favorável ao latifundiário, e graças às investidas brilhantes de seu defensor – Rafael começou a sofrer de profunda angústia sempre que tratava de assuntos relativos à causa. Ele comentou comigo certa vez que nos encontramos: – Jorge, anteontem tive um encontro de trabalho com Jacinto no meu escritório. Logo que ele adentrou o recinto, foi como se trouxesse consigo todo um enxame de abelhas. Eu simplesmente não conseguia raciocinar. Sentia minhas faculdades mentais diminuídas sobremaneira. Um ruído agudo de fundo ressoava interno à minha mente, algo que eu nunca tinha experimentado, que eu não tinha como controlar. Quando ele se foi eu disse para a secretária cancelar todos os demais compromissos do dia. Cheguei em casa por volta das cinco da tarde, sentia como se tivesse sido atropelado por um rolo compressor, deitei na cama e só fui acordar no dia seguinte. Arrependo-me até hoje por não ter dito nada em resposta àquele seu desabafo (porque eu não gostava quando Rafael começava com aquele falatório subjetivo). Foi a última vez que conversamos; e daqui para frente só me resta colecionar os cacos daquilo que eu pude juntar: do que soube através da imprensa, de minhas conversas com Ana e do que li nos grossos relatórios da perícia técnica.

 

* * *

 

Rafael trabalhou algumas noites na construção de um nunchaku; um bastão bi-seccionado usado em diversos estilos de lutas chinesas e japonesas. Parecia muito consciencioso sobre os seus planos futuros. As extremidades ele fez a partir de um cabo de vassoura cilíndrico, de madeira. O elemento flexível intermediário era constituído de um fio de nylon resistente, de bitola 0.06 polegadas, específico para a pesca em alto mar. As extremidades rígidas do nunchaku encontravam-se separadas pelo comprimento de exatos 400mm do fio de nylon.

 

Na tarde da quarta seguinte, dia dois de dezembro, Rafael e Jacinto se reuniram no escritório do advogado. Rafael havia comunicado à secretária que ela estaria liberada tão logo recebesse e encaminhasse ao seu escritório Jacinto – o último cliente do dia. E assim ela fez; deixou o escritório mais cedo naquele dia. Lua cheia às 16h14: Rafael enrolou o nunchaku ao pescoço de Jacinto e tracionou o fio de nylon valendo-se das empunhaduras de madeira. Olhava profundamente através dos olhos de Jacinto. Das narinas do latifundiário começaram a vazar fios de sangue. As órbitas de seus olhos pareciam saltar; suas escleróticas apresentavam evidentes as delicadas ramificações dos veios de sangue – olhos vermelhos. Tombou desfalecido o cadáver. Rafael ligou para a polícia e confessou o crime.

 

* * *

 

O episódio ganhou projeção nacional. Muito se especulou a respeito. Foi provado que Jacinto era mesmo culpado pelos crimes que estava sendo acusado. Durante os três anos de julgamento, Rafael permaneceu em liberdade condicional por ser réu primário. Foram tempos difíceis para meu amigo. Ele não podia botar os pés para fora de casa; o assédio da imprensa era implacável; sua existência transformou-se em verdadeiro martírio. Nesse meio tempo eu não tive oportunidade de me encontrar ou conversar com ele (como já havia adiantado na narrativa). Rafael foi condenado a sete anos de prisão.

 

* * *

 

Era sua primeira noite na solitária. Rafael pediu um copo com água. Era preciso botar um ponto final naquilo.

 

No dia seguinte, pela manhã, os carcereiros ficaram pasmos com o que encontraram: Sobre o leito havia apenas uma fina camada com resquícios de cinzas, uma rosa vermelha e um canudo de papel amarrado com barbante.

 

* * *

 

o emaranhado das criaturas transcende o limite dos corpos

para a união no espaço ulterior

o sutil habita-nos assim como nossa existência se dá através dele

num momento ou noutro essas portas sensoriais hão de desvelar

uma ordem de coisas genuína e libertária

que a mente humana jamais ousou conceber

para que encerrarmo-nos então dentro de nós mesmos?

fingirmos a felicidade efêmera provida pelo consumismo desenfreado?

não sou melhor nem pior que meu irmão Jacinto (ou Jorge)

mas optei pela transfiguração numa simples flor

espero com isso provar

através desse meu perfume

que penetro às vossas ventas

que sou capaz de acalentar o sonho mais puro de tua alma

porque não pendurei a garrucha à parede fria

que abriga os desiludidos desse mundo

 

O céu soprou o cheiro do sol.

E à noite orvalho também.

Deito ao seu colo macio.

Descanso a cabeça.

Um verde arrebatador é o seu regalo.

Doce a tarde quente de ontem.

 

Mais que a de hoje –  

Depois de amanhã;

anteontem de agora.

 

Doce quente lambuza a tarde.

Seu regalo é de um verde arrebatador.

Minha cabeça descansa.

Ao seu colo macio eu me deito.

Orvalho também quando a noite chega.

O cheiro do céu soprando ontem ao sol.

 

(1) As múltiplas possibilidades artísticas transcendem os retratos de época. Ex: Imagine uma seqüência de pinturas rupestres apresentando um hominídeo da espécie Homo erectus tentando extrair faíscas de pedras lascadas. De repente, frente ao fracasso da primeira tentativa, este lança mão de um telefone celular; pede a receita do fogo para o seu colega mais sabido; e produz luz. Esta alegoria certamente se vale de uma expressão primitiva, embora incorpore elementos atuais, consubstanciando a arte contemporânea. De fato, a arte pode romper com a restrição imposta pelo tempo – para além daquilo que sugere a Teoria da Relatividade Especial.

 

(2) Os hippies te parecem ridículos? Ouça “Little Wing”, “Castles Made of Sand” ou “Bold As Love” do Jimi Hendrix. Ouça a sua versão para “All Along the Watchtower” do Dylan.  Jimi Hendrix revolucionou o som da guitarra. É o gênio hippie inconteste. As distorções e efeitos que ele introduziu em suas canções originais reverberam através de diversos dos ritmos musicais contemporâneos – propagação de ondas além túmulo?

 

(3) Mas grande maioria de suas canções tem pouco ou nenhum apelo popular. Exceto algumas de suas pérolas – como aquelas citadas acima – existem tantas outras – quiçá ainda mais brilhantes – que só podem ser apreciadas após um profundo conhecimento do rock e do rhythm and blues – formatos artísticos que Jimi Hendrix literalmente botou de pernas para o ar. Decorre daí que o principal critério para a permanência de uma forma de arte não é a aceitação do público. Mas sim a capacidade transformadora da obra. A semente muita vez passa desapercebida. (E isso evita que ela seja devorada pelos predadores; existem aos montes por aí). Com o tempo as raízes cravam profundas na terra, mostra seu tronco robusto: revela-se ramificação da vida.

 

(4) Sobre a confissão de Picasso:

“Na arte de hoje os ‘refinados’, os ricos, os profissionais do lazer, os destiladores de quintessências, todos desejam apenas o peculiar, o sensacional, o excêntrico, o escandaloso. Eu mesmo, desde o advento do cubismo, alimentei esses companheiros com o que eles queriam e satisfiz os críticos com todas as idéias ridículas que já passaram pela minha mente. Quanto menos eles me entendiam, mais me admiravam. E assim divertindo-me com essas farsas absurdas, eu fiquei célebre, e bem rapidamente. Para um pintor, celebridade significa vendas e conseqüentemente afluência. Hoje, como você sabe, eu sou célebre, eu sou rico. Mas quando estou sozinho, eu não tenho o descaramento de me considerar um artista completo, no velho significado da palavra. Giotto, Ticiano, Rembrandt, Goya foram grandes pintores. Eu sou apenas um palhaço público – um charlatão. Eu entendi meu tempo e explorei a imbecilidade, a vaidade, a avidez de meus contemporâneos. É uma confissão amarga, mais dolorosa do que possa parecer. Mas pelo menos ela tem o mérito de ser honesta.” (Pablo Picasso, 1951)

 – Arroubo poético?

 

(5) E decorre do item anterior o seu reconhecimento pela genialidade do próximo – seja este Giotto, Ticiano, Rembrandt, Goya ou outro ainda. Dentro do balaio da arte existe espaço para a subjetividade. A quinta-essência da arte é a capacidade que esta traz de conectar as criaturas. São muitos os veículos através do qual a arte se manifesta: conceito, imagem, idéia, sabor, som, movimento… e até mesmo a dúvida dela mesma – como a confissão de Picasso.

 

(6) Com a população mundial se aproximando da casa dos sete bilhões de habitantes – com tanta cultura e diversidade; com os avanços tecnológicos e as ferramentas computacionais – deve haver espaço para as mais variadas manifestações artísticas. O que estas têm em comum é a capacidade de unir, conectar em torno de uma ou de infinitas idéias.

 

(7) E com vistas a essa perspectiva não-excludente: arte é um direito de todos! Você lê o seu Paulo Coelho, eu leio meu Rubem Fonseca.

 

(8) “Haverá vida depois das seis?”