Escolhe bem tua morte

fevereiro 25, 2010

 

(para que valha a pena a vida)

 

não foi intencional a delicada melodia

assim como saiu espontâneo e vasto o teu sorriso

ingênuo, doce, gentil

nenhum ato daquela peça havia sido previamente ensaiado

o teatro da dissimulação a espreitar do lado de fora

se os espaços e os tempos náufragos seguiram-se depois

é porque coube antes e noutro lugar a essência

remete aos sorvedouros das galáxias

que a matéria e a energia arrastam

sem dó nem piedade

nada há de ser revisto

nada há para ser dito

posto que coube ali

exata

efêmera e sublime

abissal

violenta ao extremo

A espiral da vida

fevereiro 16, 2010

O botão recém desabrochado da rosa branca. As pétalas carnudas de vida, lentas, a girar. Sob a perspectiva e a parcimônia de um beija-flor: o sorriso amplo do sol a refletir em minúsculas gotículas espalhadas ao longo da superfície do verticilo em pétalas. O leito verde largo do rio a imprimir-lhe o movimento adiante. Velocidade ao prazer do fluxo líquido, vivo. Interrogação às margens sobre a possibilidade de vasta terra, da mata densa. Adiante sempre.

Noite anterior o russo havia lhes presenteado com aquela gentil metáfora acerca da vida. Dizia ele que se assemelhava a espiral ascendente. Com o tempo podia o homem vislumbrar os giros inferiores de sua experiência de vida. Podia mesmo lembrar-se de sua infância, de um aprendizado específico, do seu primeiro amor; mas era impossível a ele prever o seu futuro. Porém, este estava logo ali a perscrutar-lhe: numa nova curva acima, mais aberta e que girava em sentido anti-horário à espiral do seu destino – aquilo que lhe era cabido. O pior que podia acontecer a um homem, dizia o russo, era ele permanecer preso numa órbita espiral de mesmo diâmetro; a repetir-se infinitamente através da mola de seus erros; dele deixar de evoluir.

Triste; mas é assim que ele se sentia.

As cores daquele instante impingiam fortes sensações nauseantes. O verde avassalador da mata rica, densa e úmida das cercanias fazia o contraponto à ausência de vida que animava o seu coração. O azul causticante e puro do céu ele inspirava e depois expirava às golfadas; como se sequer o ar lhe fosse mais digno. A cor alaranjada do sol que alumiava o novo dia. Preferia não ter presenciado a alvorada – logo ele para quem estes raios generosos sempre lhe pareceram tão revigorantes.

Um redemoinho de corvos à direita do monte. Eles esvoaçaram torpes, batiam com suas asas uns nos outros. Era como se blasfemassem à própria existência. Em movimentos circulares ascendestes dispersaram como se jamais tivessem estado ali (como se não pertencessem a esse mundo).

Transbordava o silêncio à subida da trilha.

Ele foi ter com os homens:

– Você não disse a ela para não segui-lo?

– Eu disse, vivia lhe dizendo isso. Mas você sabe como elas são: curiosas demais, querem saber tudo da gente.

– O que foi que aconteceu?

– Estava indo bem, ela sempre me respeitou, mas ontem a noite ela me seguiu.

– E o que foi que ela viu?

– As coisas que não devia.

– Como foi que você descobriu?

– Vi um arbusto se mexendo, ela deve ter se assustado e feito um movimento brusco na mata. Reconheci pela fazenda do seu vestido. Depois a vi correndo para longe dali.

– O que foi que ela ouviu?

– Ela ouviu as conversas, coisas que não devia, ela podia entender errado, por tudo a perder.

(O calvo pôs as mãos sobre o rosto e começou a soluçar. Agora chorava. O pranto copioso lhe corria a face.)

– Não tinha jeito então.

– Foi o que eu pensei.

– Da outra vez foi com ele.

(Apontou para o magro).

– E depois?

– Quando cheguei em casa ela estava lá no quarto, deitada na cama, de camisola branca à luz do lampião. Fingia ler alguma coisa, a dissimulada. Mas os olhos dela transpareciam puro espanto. Foi quando tive certeza.

– O que foi que você fez?

– Eu conversei com ela: “Não disse para você não me seguir? Por que você fez isso, meu amor? E agora, como vai ser?”

(O calvo parou de chorar e prestava máxima atenção a cada palavra; repetia-as com os movimentos dos lábios, mas sem emitir nenhum som, como que para atestar-lhes a sonoridade, ou a veracidade.)

– E então, o que aconteceu?

– Eu expliquei a ela o que devia ser feito. Mas essa hora já ia noite adentro. Disse que teríamos de esperar a aurora.

– E funcionou?

– O pior foi vê-la resmungando quieta, chorou baixinho a noite toda, acho que estava arrependida do que fez. Vi a vida esvair-se aos poucos dela. Não falou mais comigo.

– E então?

– Cumpriu sua sina. Quando amanheceu fizemos o que devia ser feito.

– Você tem certeza que saiu direito?

(O magro, o calvo, o corcunda e o gago lançaram-lhe um olhar de atravessar a alma.)

– Sim, esperamos o raiar do dia para que eu pudesse ver com meus próprios olhos.

– E o que foi que você viu?

– O leito verde largo do rio a fazer o seu trabalho. Ela foi só, com a camisola branca e as pedras amarradas aos seus pés.